08/04/2014

Tratado dos vícios e pecados 53

Questão 81: Da causa do pecado do homem, quanto à origem deste; ou, do pecado original.

Em seguida devemos tratar da causa do pecado por parte do homem. Pois, como um homem é causa do pecado de outrem, sugerindo-o, como o diabo, externamente, ele causa o pecado alheio, de maneira especial, quanto à sua origem. Donde, devemos tratar do pecado original. E, neste ponto, três questões ocorrem à consideração. Primeira, da transmissão do pecado original. Segunda, da sua essência. Terceira, do seu sujeito.

Na primeira questão discutem-se cinco artigos:

Art. 1 — Se o primeiro pecado do primeiro pai se transmitiu aos descendentes pela geração.
Art. 2 — Se também os outros pecados, quer do primeiro pai, quer dos pais imediatos, se transmitem aos descendentes.
Art. 3 — Se o pecado do primeiro pai se transmitiu, pela geração, a todos os homens.
Art. 4 — Se quem fosse milagrosamente formado de carne humana, contrairia o pecado original.
Art. 5 — Adão não tendo pecado, se os filhos de Adão e Eva contrairiam o pecado original, se só ela tivesse pecado.

Art. 1 — Se o primeiro pecado do primeiro pai se transmitiu aos descendentes pela geração.

(II Sent., dist. XXX, q. 1, a. 2; dist. XXXI, q. 1. a. 1; IV Cont. Gent., cap. L, LI, LII; De Malo, q. 4, a. 1; Compend. Theol., cap. CXCVI; Ad Rom., cap. V, lect. III).

O primeiro discute-se assim. — Parece que o primeiro pecado do primeiro pai não se transmitiu aos descendentes pela geração.

1. — Pois, diz a Escritura (Ez 18): o filho não carregará com a iniquidade do pai. Ora, carregaria, se dele a recebesse. Logo, ninguém herda, pela geração, o pecado de nenhum dos pais.

2. Demais. — O acidente não se transmite pela geração, sem a transmissão do sujeito, porque o acidente não passa de um sujeito para outro. Ora, a alma racional, sujeito da culpa, não se transmite pela geração, como já se demonstrou na primeira parte. Logo, também nenhuma outra culpa se pode transmitir por ela.

3. Demais. — Tudo quanto se transmite pela geração humana é causada pelo sémen. Ora, o sémen não pode causar o pecado, por lhe faltar a parte racional da alma, causa única deste. Logo, não podemos herdar nenhum pecado pela geração.

4. Demais. — O que é de natureza mais perfeita age mais intensamente. Ora, a carne perfeita não pode macular a alma, que lhe está unida; de contrário esta, enquanto unida àquela, não poderia purificar-se da culpa original. Logo, com maior razão, o sémen não pode macular a alma.

5. Demais. — O Filósofo diz: ninguém critica os defeituosos de nascença, mas, os que o são por desídia e negligência. Ora, chamam-se defeituosos de nascença os que tem um defeito de origem. Logo, pela origem, nada é susceptível e críticas, nem é pecado.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Rm 5): por um homem entrou o pecado neste mundo. O que não se pode entender a modo de imitação, pois diz ainda a Escritura (Sb 2): por inveja do diabo entrou no mundo a morte. Logo, só pela geração do primeiro homem entrou o pecado no mundo.

A fé católica leva-nos a admitir que o primeiro pecado do primeiro homem se transmitiu pela geração, aos descendentes. E por isso as crianças recém-nascidas são conduzidas ao baptismo, como que para se lavarem da mácula da culpa. O contrário é heresia pelagiana, conforme Agostinho o mostra em muitos dos seus livros.

Diversas são porém as vias seguidas para se investigar como o pecado do primeiro pai se pode transmitir aos descendentes. — Assim alguns, considerando ser o sujeito do pecado a alma racional, concluíram que, transmitindo-se ela pelo sémen, de uma alma maculada há-de derivar outra maculada. — Outros, porém, repudiando esta opinião como errónea, esforçam-se por mostrar como a culpa da alma do pai se transmite à prole, mesmo se a alma não se transmite, porque à prole passam os defeitos corpóreos paternos. Assim, um leproso gera outro leproso, um gotoso, outro gotoso, por uma certa corrupção do sémen, embora essa corrupção não seja denominada lepra ou gota. Ora, como o corpo é proporcionado à alma, e o defeito desta redunde naquele, e inversamente, assim também, dizem, o defeito culposo da alma deriva para a prole, com a transmissão do sémen, embora este não seja actualmente sujeito da culpa.

Mas, todas estas explicações são insuficientes. Pois, concedamos que certos defeitos corpóreos se transmitam pela geração, dos pais para a prole. E que também certos defeitos da alma sejam consequência de uma indisposição do corpo, como quando de fátuos nascem fátuos. Apesar disto, porém, o defeito de nascença exclui a essência da culpa — a ser voluntária. Donde, ainda admitindo que a alma racional se transmita, por isso mesmo que a mácula da alma do descendente não lhe depende da vontade, não existe a essência da culpa, que provoca a pena. Pois, como diz o Filósofo: ninguém acusará a um cego de nascença, mas antes, todos se compadecerão dele.

E, portanto, devemos proceder por outra via e dizer, que os homens nascidos de Adão podem considerar-se como um só homem, por terem a mesma natureza herdada do primeiro pai. Assim também, na ordem civil, todos os homens da mesma comunidade se consideram como quase um só corpo, e toda a comunidade, como quase um homem. E também diz Porfírio: pela participação da espécie, muitos homens constituem um só homem. Donde, os homens nascidos de Adão constituem como que muitos membros de um só corpo. Ora, o aco de um membro corpóreo, p. ex., da mão, é voluntário, não por vontade dela própria, mas por vontade da alma, primeiro motor dos membros. Por isso o homicídio que a mão cometer não se lhe imputará como pecado, se a considerarmos em si mesma, separada do corpo; mas, se lhe imputa, enquanto parte do homem, movida pelo primeiro princípio motor deste. Assim pois, a desordem existente num determinado homem, gerado de Adão, não é voluntária, por vontade daquele, mas pela deste, que move, pela moção da geração, todos os que dele receberam a origem, assim como a vontade da alma move a agirem todos os membros do corpo. Donde, o pecado assim originado do primeiro pai, para a sua descendência, chama-se original, do mesmo modo que derivado da alma para os membros do corpo, se chama actual. E assim como este, cometido por um membro, não é pecado desse membro, senão enquanto parte do homem, sendo por isso chamado pecado humano; assim também o pecado original não é pecado de uma determinada pessoa, senão na medida em que esta recebeu a natureza do primeiro pai, sendo por isso chamado pecado da natureza, conforme a Escritura (Ef 2): éramos por natureza filhos da ira.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — Diz-se que o filho não carrega com o pecado do pai por não ser por causa deste, castigado, salvo se lhe participa da culpa. Ora, tal se dá na questão vertente: pela geração passa a culpa do pai para o filho, assim como, pela imitação, se transmite o pecado actual.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Embora a alma racional não se transmute, por não poder o sémen causá-la, este predispõe contudo para ela. Donde, pela virtude seminal, a natureza humana passa do pai para a prole e, simultaneamente com a natureza, a sua deficiência. Por isso, quem nasce é consorte do primeiro pai na culpa, por ter recebido dele a natureza, por via da geração.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Embora a culpa não exista actualmente no sémen, nele existe contudo virtualmente a natureza humana, contaminada por aquela.

RESPOSTA À QUARTA. — O sémen é o princípio da geração, o acto próprio da natureza, a cuja propagação ele serve. Por isso a alma se macula, mais pelo sémen, do que pela carne já perfeita e já particularizada numa certa pessoa.

RESPOSTA À QUINTA. — O que é de nascença não é susceptível de acusação, se considerarmos, em si, quem assim nasceu. Considerado porém como referido a algum princípio, pode sê-lo. Assim, quem nasce sofre a ignomínia da raça, causada pela culpa de algum progenitor.


Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


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