24/04/2014

Evangelho do dia, comentário e Leitura espiritual

Tempo comum Semana X

Santo André - Apóstolo

Evangelho: Mt 10, 7-13

7 Ide, e anunciai que está próximo o Reino dos Céus. 8 «Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, limpai os leprosos, lançai fora os demónios. Dai de graça o que de graça recebestes. 9 Não leveis nos vossos cintos nem ouro, nem prata, nem dinheiro, 10 nem alforge para o caminho, nem duas túnicas, nem sandálias, nem bordão; porque o operário tem direito ao seu alimento. 11 «Em qualquer cidade ou aldeia em que entrardes, informai-vos de quem há nela digno de vos receber, e ficai aí até que vos retireis. 12 Ao entrardes na casa, saudai-a, dizendo: “A paz seja nesta casa”. 13 Se aquela casa for digna, descerá sobre ela a vossa paz; se não for digna, a vossa paz tornará para vós.

Comentário:

Fala-se constantemente de paz, justamente por ela não estar, como deveria, instalada no mundo.


A paz verdadeira, a única que nos deve interessar, é a paz de Cristo.


A paz que os homens almejam não é a conseguida com a imposição, à força quer seja à mesa de negociações quer alcançada no campo de batalha. Para ter paz é preciso, antes de mais, estar pronto, disponível para ceder sem hesitação naquilo que, em nós, não passa de capricho ou teimosia.
Enquanto o não fizermos é inútil perseguir a paz porque, não a tendo em nós mesmos, jamais a alcançaremos.


(ama, comentário sobre Mt 10, 7-15, 2012.06.11)

Documentos do Concílio Vaticano II

CONSTITUIÇÃO PASTORAL
GAUDIUM ET SPES
SOBRE A IGREJA NO MUNDO ACTUAL

PROÉMIO 1

Íntima união da Igreja com toda a família humana

1. As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. Porque a sua comunidade é formada por homens, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação para a comunicar a todos. Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao género humano e à sua história.

A quem se dirige o Concílio: todos os homens

2. Por isso, o Concílio Vaticano II, tendo investigado mais profundamente o mistério da Igreja, não hesita agora em dirigir a sua palavra, não já apenas aos filhos da Igreja e a quantos invocam o nome de Cristo, mas a todos os homens. Deseja expor-lhes o seu modo de conceber a presença e actividade da Igreja no mundo de hoje.

Tem, portanto, diante dos olhos o mundo dos homens, ou seja a inteira família humana, com todas as realidades no meio das quais vive; esse mundo que é teatro da história da humanidade, marcado pelo seu engenho, pelas suas derrotas e vitórias; mundo, que os cristãos acreditam ser criado e conservado pelo amor do Criador; caído, sem dúvida, sob a escravidão do pecado, mas libertado pela cruz e ressurreição de Cristo, vencedor do poder do maligno; mundo, finalmente, destinado, segundo o desígnio de Deus, a ser transformado e alcançar a própria realização.

Para iluminar a problemática humana e salvar o homem

3. Nos nossos dias, a humanidade, cheia de admiração ante as próprias descobertas e poder, debate, porém, muitas vezes, com angústia, as questões relativas à evolução actual do mundo, ao lugar e missão do homem no universo, ao significado do seu esforço individual e colectivo, enfim, ao último destino das criaturas e do homem.

Por isso, o Concílio, testemunhando e expondo a fé do Povo de Deus por Cristo congregado, não pode manifestar mais eloquentemente a sua solidariedade, respeito e amor para com a inteira família humana, na qual está inserido, do que estabelecendo com ela diálogo sobre esses vários problemas, aportando a luz do Evangelho e pondo à disposição do género humano as energias salvadoras que a Igreja, conduzida pelo Espírito Santo, recebe do seu Fundador. Trata-se, com efeito, de salvar a pessoa do homem e de restaurar a sociedade humana. Por isso, o homem será o fulcro de toda a nossa exposição: o homem na sua unidade e integridade: corpo e alma, coração e consciência, inteligência e vontade.

Eis a razão por que este sagrado Concílio, proclamando a sublime vocação do homem, e afirmando que nele está depositado um germe divino, oferece ao género humano a sincera cooperação da Igreja, a fim de instaurar a fraternidade universal que a esta vocação corresponde. Nenhuma ambição terrena move a Igreja, mas unicamente este objectivo: continuar, sob a direcção do Espírito Consolador, a obra de Cristo que veio ao mundo para dar testemunho da verdade 2, para salvar e não para julgar, para servir e não para ser servido 3.

INTRODUÇÃO

A CONDIÇÃO DO HOMEM NO MUNDO ACTUAL

Esperanças e temores

4. Para levar a cabo esta missão, é dever da Igreja investigar a todo o momento os sinais dos tempos, e interpretá-los à luz do Evangelho; para que assim possa responder, de modo adaptado em cada geração, às eternas perguntas dos homens acerca do sentido da vida presente e da futura, e da relação entre ambas. É, por isso, necessário conhecer e compreender o mundo em que vivemos, as suas esperanças e aspirações, e o seu carácter tantas vezes dramático. Algumas das principais características do mundo actual podem delinear-se do seguinte modo.

A humanidade vive hoje uma fase nova da sua história, na qual profundas e rápidas transformações se estendem progressivamente a toda a terra. Provocadas pela inteligência e actividade criadora do homem, elas reincidem sobre o mesmo homem, sobre os seus juízos e desejos individuais e colectivos, sobre os seus modos de pensar e agir, tanto em relação às coisas como às pessoas. De tal modo que podemos já falar duma verdadeira transformação social e cultural, que se reflecte também na vida religiosa.

Como acontece em qualquer crise de crescimento, esta transformação traz consigo não pequenas dificuldades. Assim, o homem, que tão imensamente alarga o próprio poder, nem sempre é capaz de o pôr ao seu serviço. Ao procurar penetrar mais fundo no interior de si mesmo, aparece frequentemente mais incerto a seu próprio respeito. E, descobrindo gradualmente com maior clareza as leis da vida social, hesita quanto à direcção que a esta deve imprimir.

Nunca o género humano teve ao seu dispor tão grande abundância de riquezas, possibilidades e poderio económico; e, no entanto, uma imensa parte dos habitantes da terra é atormentada pela fome e pela miséria, e inúmeros são ainda os analfabetos. Nunca os homens tiveram um tão vivo sentido da liberdade como hoje, em que surgem novas formas de servidão social e psicológica. Ao mesmo tempo que o mundo experimenta intensamente a própria unidade e a interdependência mútua dos seus membros na solidariedade necessária, ei-lo gravemente dilacerado por forças antagónicas; persistem ainda, com efeito, agudos conflitos políticos, sociais, económicos, «raciais» e ideológicos, nem está eliminado o perigo duma guerra que tudo subverta. Aumenta o intercâmbio das ideias; mas as próprias palavras com que se exprimem conceitos da maior importância assumem sentidos muito diferentes segundo as diversas ideologias. Finalmente, procura-se com todo o empenho uma ordem temporal mais perfeita, mas sem que a acompanhe um progresso espiritual proporcionado.

Marcados por circunstâncias tão complexas, muitos dos nossos contemporâneos são incapazes de discernir os valores verdadeiramente permanentes e de os harmonizar com os novamente descobertos. Daí que, agitados entre a esperança e a angústia, sentem-se oprimidos pela inquietação, quando se interrogam acerca da evolução actual dos acontecimentos. Mas esta desafia o homem, força-o até a uma resposta.

Evolução e domínio da técnica e da ciência

5. A actual perturbação dos espíritos e a mudança das condições de vida, estão ligadas a uma transformação mais ampla, a qual tende a dar o predomínio, na formação do espírito, às ciências matemáticas e naturais, e, no plano da acção, às técnicas, fruto dessas ciências. Esta mentalidade científica modela a cultura e os modos de pensar duma maneira diferente do que no passado. A técnica progrediu tanto que transforma a face da terra e tenta já dominar o espaço.

Também sobre o tempo estende a inteligência humana o seu domínio: quanto ao passado, graças ao conhecimento histórico; relativamente ao futuro, com a perspectiva e a planificação. Os progressos das ciências biológicas, psicológicas e sociais não só ajudam o homem a conhecer-se melhor, mas ainda lhe permitem exercer, por meios técnicos, uma influência directa na vida das sociedades. Ao mesmo tempo, a humanidade preocupa-se cada vez mais com prever e ordenar o seu aumento demográfico.

O próprio movimento da história torna-se tão rápido, que os indivíduos dificilmente o podem seguir. O destino da comunidade humana torna-se um só, e não já dividido entre histórias independentes. A humanidade passa, assim, duma concepção predominantemente estática da ordem das coisas para um outra, preferentemente dinâmica e evolutiva; daqui nasce uma nova e imensa problemática, a qual está a exigir novas análises e novas sínteses.

Mudanças na ordem social

6. Pelo mesmo facto, verificam-se cada dia maiores transformações nas comunidades locais tradicionais, como são famílias patriarcais, os clãs, as tribos, aldeias e outros diferentes grupos, e nas relações da convivência social.

Difunde-se progressivamente a sociedade de tipo industrial, levando algumas nações à opulência económica e transformando radicalmente as concepções e as condições de vida social vigentes desde há séculos. Aumentam também a preferência e a busca da vida urbana, quer pelo aumento das cidades e do número de seus habitantes, quer pela difusão do género de vida urbana entre os camponeses.

Novos e mais perfeitos meios de comunicação social permitem o conhecimento dos acontecimentos e a rápida e vasta difusão dos modos de pensar e de sentir; o que, por sua vez, dá origem a numerosas repercussões.

Nem se deve minimizar o facto de muitos homens, levados por diversos motivos a emigrar, mudarem com isso o próprio modo de viver.

Multiplicam-se assim sem cessar as relações do homem com os seus semelhantes, ao mesmo tempo que a própria socialização introduz novas ligações, sem no entanto favorecer em todos os casos uma conveniente maturação das pessoas e relações verdadeiramente pessoais («personalização»).

É verdade que tal evolução aparece mais claramente nas nações que beneficiam já das vantagens do progresso económico e técnico, mas nota-se também entre os povos ainda em vias de desenvolvimento, que desejam alcançar para os seus países os benefícios da industrialização e da urbanização. Esses povos, sobretudo os que estão ligados a tradições mais antigas, sentem ao mesmo tempo a exigência dum exercício cada vez mais pessoal da liberdade.

Transformações psicológicas, morais e religiosas

7. A transformação de mentalidade e de estruturas põe muitas vezes em questão os valores admitidos, sobretudo no caso dos jovens. Tornam-se frequentemente impacientes e mesmo, com a inquietação, rebeldes; conscientes da própria importância na vida social, aspiram a participar nela o mais depressa possível. Por este motivo, os pais e educadores encontram não raro crescentes dificuldades no desempenho da sua missão.

Por sua vez, as instituições, as leis e a maneira de pensar e de sentir herdadas do passado nem sempre parecem adaptadas à situação actual; e daqui provém uma grave perturbação no comportamento e até nas próprias normas de acção.

Por fim, as novas circunstâncias afectam a própria vida religiosa. Por um lado, um sentido crítico mais apurado purifica-a duma concepção mágica do mundo e de certas sobrevivências supersticiosas, e exige cada dia mais a adesão a uma fé pessoal e operante; desta maneira, muitos chegam a um mais vivo sentido de Deus. Mas, por outro lado, grandes massas afastam-se práticamente da religião. Ao contrário do que sucedia em tempos passados, negar Deus ou a religião, ou prescindir deles já não é um facto individual e insólito: hoje, com efeito, isso é muitas vezes apresentado como exigência do progresso científico ou dum novo tipo de humanismo. Em muitas regiões, tudo isto não é apenas afirmado no meio filosófico, mas invade em larga escala a literatura, a arte, a interpretação das ciências do homem e da história e até as próprias leis civis; o que provoca a desorientação de muitos.
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Notas:
1. A Constituição pastoral «A Igreja no mundo actual», formada por duas partes, constitui um todo unitário. E chamada «pastoral», porque, apoiando-se em princípios doutrinais, pretende expor as relações da Igreja com o mundo e os homens de hoje. Assim, nem à primeira parte falta a intenção pastoral, nem à segunda a doutrinal. Na primeira parte, a Igreja expõe a sua própria doutrina acerca do homem, do mundo no qual o homem está integrado e da sua relação para com eles. Na segunda, considera mais expressamente vários aspectos da vida e da sociedade contemporâneas, e sobretudo as questões e os problemas que, nesses domínios, padecem hoje de maior urgência. Daqui resulta que, nesta segunda parte, a matéria, tratada à luz dos princípios doutrinais, não compreende apenas elementos imutáveis, mas também transitórios. A Constituição deve, pois, ser interpretada segundo as normas teológicas gerais, tendo em conta, especialmente na segunda parte, as circunstâncias mutáveis com que estão intrinsecamente ligados os assuntos em questão.
2. Cfr. Jo. 18,37.



Evangelho do dia, comentário e Leitura espiritual

Tempo de Páscoa

I Semana 


Evangelho: Lc 24, 35-48

35 E eles contaram também o que lhes tinha acontecido no caminho, e como O tinham reconhecido ao partir o pão. 36 Enquanto falavam nisto, apresentou-Se Jesus no meio deles e disse-lhes: «A paz seja convosco!». 37 Mas eles, turbados e espantados, julgavam ver algum espírito.38 Jesus disse-lhes: «Porque estais turbados, e porque se levantaram dúvidas nos vossos corações? 39 Olhai para as Minhas mãos e os Meus pés, porque sou Eu mesmo; apalpai e vede, porque um espírito não tem carne, nem ossos, como vós vedes que Eu tenho». 40 Dito isto, mostrou-lhes as mãos e os pés. 41 Mas, estando eles, por causa da alegria, ainda sem querer acreditar e estupefactos, disse-lhes: «Tendes aqui alguma coisa que se coma?». 42 Eles apresentaram-Lhe uma posta de peixe assado.43 Tendo-o tomado comeu-o à vista deles. 44 Depois disse-lhes: «Isto é o que Eu vos dizia quando ainda estava convosco; que era necessário que se cumprisse tudo o que de Mim estava escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos». 45 Então abriu-lhes o entendimento, para compreenderem as Escrituras, 46 e disse-lhes: «Assim está escrito que o Cristo devia padecer e ressuscitar dos mortos ao terceiro dia, 47 e que em Seu nome havia de ser pregado o arrependimento e a remissão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém. 48 Vós sois as testemunhas destas coisas.

Comentário:

O que dissemos a propósito da tristeza, (vd Lc 24, 13-35), quando domina o coração aplica- se também à alegria e, de facto, a todos os sentimentos ou emoções quando nos deixamos dominar por elas.

Por isso é fundamental o domínio sobre elas porque só assim o discernimento se encontra verdadeiramente capaz de ver, dar-se conta, apreciar o que, por qualquer razão, tem de o ser mais pelos olhos da alma que dos do corpo, mais com a fé que com a razão

(ama, comentário sobre Lc 24, 35-48, 2013.04.04)


Leitura espiritual






Temas para leitura espiritual




Oração Mental

Oração: diálogo do homem com Deus, de coração a coração. Uma relação na qual o homem pode pôr cada vez mais empenho, como se sugere neste texto.

«Se o cristianismo – dizia João Paulo II – se há-de distinguir no nosso tempo, sobretudo, pela “arte da oração”, como não sentir uma renovada necessidade de estar longos tempos em conversa espiritual, em adoração silenciosa, em atitude de amor, diante de Cristo presente no Santíssimo Sacramento? Quantas vezes, meus queridos irmãos e irmãs, fiz esta experiência e nela encontrei força, consolo e apoio!» 1.

COM TODA A TUA ALMA

Queremos amar a Deus Pai com todas as nossas forças, pôr a alma na oração, com todas as suas potências:, a inteligência e a vontade, a memória, a imaginação e os sentimentos. O Senhor serve-se delas, sucessiva ou simultaneamente, como vias para entrar em diálogo connosco.

Não há dois tempos de oração iguais. O Espírito Santo, fonte de contínua novidade, toma a iniciativa, atua e espera. Às vezes espera uma luta a secas, quando parece que não vem nenhuma resposta: nota-se então mais o esforço da vontade, sereno e tenaz, por fazer atos de fé e de amor, por Lhe contar coisas, por aplicar a inteligência e a imaginação à Sagrada Escritura, a textos da liturgia ou de autores espirituais; procurando-O com palavras ou apenas olhando-O. A atitude de procura é já diálogo que transforma, embora às vezes pareça que não encontra eco.

Outras vezes irrompem ideias ou afetos que dão fluidez aos tempos de oração e ajudam a apercebermo-nos da presença de Deus. Nuns e noutros casos – com afetos, ideias, com vontade, ou sem ela – trata-se de que ponhamos as nossas potências nas mãos do Espírito Santo. Somos seus e Ele disse: Não posso Eu fazer o que quero com o que é meu? 2 Oração mental é diálogo com Deus, de coração a coração, em que intervém a alma toda: a inteligência e a imaginação, a memória e a vontade. Uma meditação que contribui para dar valor sobrenatural à nossa pobre vida humana, à nossa vida corrente e diária. 3.

A única regra que Deus quis seguir é a que Se impôs ao criar-nos livres, esperar a nossa filial colaboração. Ao dispormo-nos para a oração, fa-lo-emos como filhos, lutando por manter a atenção neste Pai que quer falar connosco. Ao fim e ao cabo, o que se espera da nossa parte não é que haja facilidade na inteligência, ou que se inflame o coração com afectos. O importante é a determinação por manter a abertura ao diálogo, sem deixar que essa atitude decaia por rotina ou desalento.

ORAÇÃO E PLENITUDE

Deus fala de muitas maneiras; a oração é sobretudo escuta e resposta. Fala na Escritura, na liturgia, na direção espiritual, através do mundo e nas circunstâncias da vida: no trabalho, nas vicissitudes do dia ou no convívio com os outros. Para aprender esta linguagem divina convém dedicar algum tempo a estar a sós com Deus.

Falar com Deus é deixar que Ele vá ganhando protagonismo no nosso ser. Meditar a vida de Cristo permite entender a nossa história pessoal, para a abrir à graça. Queremos que entre, para que transforme a nossa vida em reflexo fiel da Sua. Deus Pai predestinou-nos para sermos conformes com a imagem do Seu Filho 4, e quer ver Cristo formado em nós 5, para que possamos exclamar: Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim 6.

Especialmente no Novo Testamento, o melhor livro de meditação, contemplamos os mistérios de Cristo: revivemos o Nascimento em Belém, a vida escondida em Nazaré, as angústias da Paixão... Esta assimilação ao Filho realiza-a o Espírito Santo com eficácia; mas não é um processo mecânico diante do qual o baptizado seria apenas um espectador assombrado; podemos colaborar filialmente com a acção divina, dispondo bem a vontade, aplicando a imaginação e a inteligência, dando largas aos bons afectos.

Era isto que fazia São Josemaria, quando entendia os seus próprios sofrimentos, ao considerar a agonia de Cristo: E eu, que também quero cumprir a Santíssima Vontade de Deus, seguindo os passos do Mestre, poderei queixar-me, se encontro por companheiro de caminho o sofrimento?

Constituirá um sinal certo da minha filiação, porque me trata como ao Seu Divino Filho. E, então, como Ele, poderei gemer e chorar sozinho no meu Getsemani; mas, prostrado por terra, reconhecendo O meu nada, subirá ao Senhor um grito saído do íntimo da minha alma: Pater mi, Abba, Pater, ... fiat! 7

Falamos comDeus quando oramos, e a Ele ouvimos quando lemos as palavras divinas 8; «a oração deve acompanhar a leitura da Sagrada Escritura para que se realize o diálogo de Deus com o homem» 9, um diálogo no qual o Pai nos fala do Filho, para que sejamos outros Cristos, o próprio Cristo. Vale a pena mobilizar as nossas potências à hora de rezar com o Evangelho. Primeiro, imaginas a cena ou o mistério, que te servirá para te recolheres e meditares. Depois, aplicas o entendimento, para considerar aquele traço da vida do Mestre (…). Conta-lhe então o que te costuma suceder nestes assuntos, o que se passa contigo, o que te está a acontecer. Mantém-te atento, porque talvez Ele queira indicar-te alguma coisa: surgirão essas moções interiores, o caíres em ti, as admoestações. 10.

Trata-se, em resumo, de rezar sobre a nossa vida para a viver como Deus espera. É muito necessário, especialmente para os que procuram santificar-se no trabalho. Que obras serão as tuas, se não as meditaste na presença do Senhor, para as ordenares? Sem essa conversa com Deus, como poderás acabar com perfeição a actividade do dia? 11

Ao contemplar, por um lado, os mistérios de Jesus e, por outro, os acontecimentos da nossa existência, aprendemos a rezar como Cristo, cuja oração estava toda «nesta adesão amorosa do seu coração de homem ao “mistério da vontade” do Pai (Ef 1, 9)» 12; aprendemos a rezar como um filho de Deus, seguindo o exemplo de São Josemaria. A minha oração, diante de qualquer circunstância, tem sido a mesma, com tonalidades diferentes. Tenho-lhe dito: Senhor, Tu colocaste-me aqui; Tu confiaste-me isto ou aquilo, e eu confio em Ti. Sei que és meu Pai e tenho visto sempre que as crianças confiam absolutamente nos pais. A minha experiência sacerdotal confirmou-me que este abandono nas mãos de Deus leva as almas a adquirir uma piedade forte, profunda e serena, que impele a trabalhar constantemente com rectidão de intenção. 13.

A oração é o meio privilegiado para amadurecer. É parte imprescindível desse processo pelo qual o centro de gravidade se transfere do amor próprio para o amor a Deus e aos outros por Ele. A personalidade madura tem peso, consistência, continuidade, traços bem definidos que dão um modo, peculiar em cada pessoa, de refletir Cristo.

A pessoa madura é como um piano bem afinado. Não procura a genialidade de emitir sons imprevistos, de surpreender. O surpreendente é que dá a nota certa e o genial é que, graças à sua estabilidade, permite interpretar as melhores melodias; é fiável, responde de modo previsível e, por isso, serve. Atingir essa estabilidade e firmeza que dá a maturidade é todo um desafio.

Contemplar a Humanidade do Senhor é o melhor caminho para a plenitude. Ele ajuda a descobrir e a corrigir as teclas que não respondem bem. Para alguns será uma vontade que resiste a pôr em prática o que Deus espera deles. Outros podem notar que lhes falta calor humano, tão necessário para a convivência e para o apostolado. Alguns, talvez enérgicos, têm tendência, no entanto, para a precipitação e para a desordem, levados pelos sentimentos.

É uma tarefa que não acaba nunca. Implica detetar os desequilíbrios, as notas que desafinam, com uma atitude humilde e decidida a melhorar, sem impaciências nem desânimos, porque o Senhor nos olha com imenso carinho e compreensão. Que importante é aprender a meditar a nossa vida com os olhos do Senhor! Falando com Ele desperta-se a paixão pela verdade, em contacto com ela; perde-se o medo a conhecer o que realmente somos, sem evasões da imaginação ou deformações da soberba.

Ao contemplar a realidade a partir do diálogo com Deus, aprende-se também a ler nas pessoas e nos factos, sem o filtro flutuante de uma apreciação exclusivamente sentimental ou de utilidade imediata. É também onde aprendemos a admirar a grandeza de um Deus que ama a nossa pequenez, ao contemplar tantos mistérios que nos superam.

A VERDADEIRA ORAÇÃO

Este povo honra-Me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim 14. Assim se lamenta o Senhor na Escritura, porque sabe que cada alma tem que pôr n’Ele o seu coração para atingir a felicidade. Por isso, na oração, a disposição da vontade para encontrar, amar e pôr em prática o querer de Deus, tem uma certa preeminência sobre as outras capacidades da alma: «O aproveitamento da alma não está em pensar muito, mas em amar muito» 15.

Muitas vezes, rezar amando exigirá esforços, frequentemente vividos sem consolos nem frutos aparentes. A oração não é problema de falar ou de sentir, mas de amar. E amamos quando nos esforçamos por dizer alguma coisa ao Senhor, mesmo que não se diga nada. 16. Temos a confiança filial de que Deus outorga a cada um os dons de que mais necessita, quando mais os necessita. A oração – recorda-o – não consiste em fazer discursos bonitos, frases grandiloquentes ou que consolem...

Oração é, às vezes, um olhar a uma imagem de Nosso Senhor ou de Sua Mãe; outras, um pedido com palavras; outras, o oferecimento das boas obras, dos resultados da fidelidade...

Como o soldado que está de guarda, assim temos de estar nós à porta de Deus Nosso Senhor: e isso é oração. Ou como se deita o cãozinho aos pés do seu dono.

Não te importes de lho dizer: Senhor, aqui me tens como um cão fiel; ou melhor, como um burrinho que não dá coices a quem lhe quer bem. 17.

Esta experiência também acontece na amizade humana. Quando nos encontramos com outras pessoas pode suceder que não saibamos o que dizer, porque a cabeça não responde apesar das tentativas para entabular a conversa. Procuramos então outros meios para que não se crie um ambiente de frieza: um olhar amável, um gesto de cortesia, uma atitude de escuta atenta, um pequeno detalhe de preocupação pelas suas coisas. Toda a experiência verdadeiramente humana abre possibilidades de convívio com Jesus Cristo, perfeito Deus e perfeito homem.

Como fidelidade e perseverança são outros nomes do amor, saberemos avançar, também quando a inteligência, a imaginação ou a sensibilidade escapem ao nosso controlo. Nesses momentos, o amor pode encontrar outras vias para se expandir. A tua inteligência está entorpecida, inactiva. Fazes esforços inúteis para coordenar as ideias, na presença do Senhor; um verdadeiro atordoamento!
Não te esforces nem te preocupes. - Escuta-me: é a hora do coração. 18

À hora de falar com Deus, ainda que a cabeça não responda, não se interrompe o diálogo. Inclusivamente quando verificamos que, apesar de uma luta autêntica, há distração e entorpecimento, temos a segurança de ter agradado com os nossos bons desejos a Deus Pai, que olha com amor para os nossos esforços.

ORAÇÃO E OBRAS

Atrevo-me a assegurar, sem temor de me enganar, que há muitas, infinitas maneiras de orar. Mas eu preferia para todos nós a autêntica oração dos filhos de Deus, não o palavreado dos hipócritas que hão-de ouvir de Jesus: nem todo o que me diz, Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus. (…) Que o nosso clamor – Senhor! - vá unido ao desejo eficaz de converter em realidade essas moções interiores, que o Espírito Santo desperta na nossa alma 19.

E para converter em realidade essas moções recebidas na oração, convém formular frequentemente propósitos. O fim da reflexão sobre as prescrições do Céu é a acção, para pôr em prática as prescrições divinas 20. Não se trata apenas de que a nossa inteligência navegue em ideias piedosas, mas de escutar a voz do Senhor e de cumprir a Sua vontade. A tua oração não pode ficar em meras palavras: há-de ter realidades e consequências práticas 21.

A oração dos filhos de Deus há-de ter consequências apostólicas. O apostolado revela-nos outra faceta do amor na oração. Queremos voltar a aprender a rezar, também para poder ajudar os outros. Aí encontraremos a força para levar muitas pessoas por caminhos de diálogo com Deus.

Não rezamos sozinhos porque não vivemos nem queremos viver sós. Quando pomos a nossa vida diante de Deus, necessariamente temos de falar daquilo que mais nos interessa, dos nossos irmãos na fé, dos nossos familiares, amigos e conhecidos; dos que nos ajudam ou daqueles que não nos entendem ou nos fazem sofrer. Se a vontade tem boas disposições, sem medo de complicar a vida, poderemos escutar na oração sugestões divinas, novos horizontes apostólicos e modos criativos de ajudar os outros.

O Senhor, a partir do interior da nossa alma, ajudar-nos-á a compreender os outros, a saber como lhes exigir, como levá-los até Ele; dará luzes à nossa inteligência para ler nas almas; aperfeiçoará os afetos; ajudar-nos-á a amar com um amor mais forte e mais limpo. A nossa vida de apóstolos vale o que valer a nossa oração.

c. ruiz
2012/09/20

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama
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Notas:
1 João Paulo II, Litt. Enc. Ecclesia de Eucaristia, 17-IV-2004, n. 25.
2 Mt 20, 15.
3 São Josemaria, Cristo que passa, n. 119.
4 Ro 8, 29.
5 Cfr. Gal 4, 19.
6 Gal 2, 20.
7 São Josemaria, Via Sacra, I, 1.
8 Cfr. Santo Ambrósio, De officiis ministrorum, I, 20, 88.
9 Conc. Vaticano II, Const. dogm. Dei Verbum, n. 25.
10 São Josemaria, Amigos de Deus, n. 253.
11 São Josemaria, Sulco, n. 448.
12 Catecismo da Igreja Católica, n. 2603.
13São Josemaria, Amigos de Deus, n. 143.
14 Is 29, 13; cfr. Mt 15, 8.
15 Santa Teresa de Jesus, Fundações, cap. 5, n. 2.
16 São Josemaria, Sulco, n. 464.
17 São Josemaria, Forja, n. 73.
18 São Josemaria, Caminho, n. 102.
19 São Josemaria, Amigos de Deus, n. 243.
20 Cfr. Santo Ambrósio: Expositio in Psalmum CXVIII, 6, 35.
21 São Josemaria, Forja, n. 75








Pequena agenda do cristão

Quinta-Feira

(Coisas muito simples, curtas, objectivas)

Propósito: Participar na Santa Missa.

Senhor, vendo-me tal como sou, nada, absolutamente, tenho esta percepção da grandeza que me está reservada dentro de momentos: Receber o Corpo, o Sangue, a Alma e a Divindade do Rei e Senhor do Universo.
O meu coração palpita de alegria, confiança e amor. Alegria por ser convidado, confiança em que saberei esforçar-me por merecer o convite e amor sem limites pela caridade que me fazes. Aqui me tens, tal como sou e não como gostaria e deveria ser.
Não sou digno, não sou digno, não sou digno! Sei porém, que a uma palavra Tua a minha dignidade de filho e irmão me dará o direito a receber-te tal como Tu mesmo quiseste que fosse. Aqui me tens, Senhor. Convidaste-me e eu vim.

Lembrar-me: Comunhões espirituais.

Senhor, eu quisera receber-vos com aquela pureza, humildade e devoção com que Vos recebeu Vossa Santíssima Mãe, com o espírito e fervor dos Santos.

Pequeno exame: Cumpri o propósito que me propus ontem?

Vinte anos a ser a voz de um Papa

As dimensões de um Santo

As memórias de quem viveu o pontificado do “Papa Bom”

No dia 16 de Outubro de 1978, Joaquín Navarro-Valls, correspondente em Roma do diário espanhol “ABC”, estava na Praça de São Pedro com outros vaticanistas. Viveu com emoção o anúncio do primeiro Papa polaco da história. Mas naquele dia, o jornalista espanhol (e médico psiquiatra de formação) estava longe de imaginar o que lhe viria a acontecer.

De facto, a sua vida mudou quando, alguns anos depois, em 1984, recebeu um telefonema: “Recordo-me muito bem. Um dia, recebi uma chamada telefónica no meu escritório de uma pessoa que me disse ‘você tem que vir almoçar com o Papa’. Naturalmente, para mim, foi uma grande surpresa. Fui e encontrei-me, frente a frente, com este homem que me queria ouvir sobre o que eu sabia, o que pensava e se tinha alguma ideia para melhorar o modo de comunicar. Não tanto de comunicá-lo a ele, mas de comunicar todos aqueles valores específicos da Igreja Católica e que a estrutura do Vaticano devia comunicar melhor.”

Navarro-Valls foi para casa pensar, até que, alguns dias mais tarde, chegou um novo telefonema: “Quando, pouco tempo depois, recebi a segunda chamada telefónica e me disseram ‘o Papa nomeou-o director da sala de imprensa da Santa Sé’, pode imaginar a minha inquietação e as dúvidas que eu tinha. Porque pensava que era uma enorme responsabilidade se fizessem aquilo que eu queria fazer e como eu achava que o Papa queria fazer. Por fim, aceitei, pensando que seria um encargo por um par de anos, mas, afinal, foi um pouco mais longo, porque acabou só no dia em que ele morreu, ou seja, mais de 20 anos depois.”

Navarro-Valls tem, por isso, muita coisa para contar. São mais de 20 anos ao lado de um homem notável, que introduziu grandes novidades no modo de ser Papa. O porta-voz de João Paulo II considera mesmo que aquele pontificado foi revolucionário, porque permitiu relacionar a Igreja com a modernidade.

“Penso, na verdade, que o pontificado de João Paulo II foi o primeiro pontificado da história da Igreja que entrou plenamente, com enorme audácia e vivacidade naquele conjunto de teorias e filosofias a que chamamos a modernidade. Ou seja, introduziu o pontificado na modernidade histórica. Por isso, em tantos momentos, o seu pontificado parecia revolucionário, que era uma coisa completamente nova; e é verdade! Ele estava-o realmente actualizando, no sentido histórico da expressão: o conteúdo daquilo que ele dizia que não mudava, mas o modo como o exprimia e o exemplo da sua própria vida era totalmente novo na história da Igreja”, considera

João Paulo II, com as suas viagens pastorais, deu, por várias vezes, a volta ao mundo. Fez 104 viagens fora de Itália e com visitas muito variadas. Houve de tudo um pouco: desde a Polónia e Cuba, com forte pendor político, a Manila e a Jornadas Mundiais da Juventude com milhões de fiéis, mas não esqueceu pequenas comunidades, como as do Pólo Norte ou Azerbaijão.

“Recordo muito bem aquela viagem ao Azerbaijão, que muita gente na Cúria o desaconselhou a fazer, mas ele quis fazê-la. Como sabe, no Azerbaijão, na altura em que o Papa lá foi, em todo aquele imenso país, havia 122 católicos. Somente 122 católicos. E, mesmo assim, o Papa quis lá ir para se encontrar com esta pequena comunidade católica, não obstante ter sido três anos antes da sua morte e o Papa já ser idoso, doente e ter dificuldades em andar", diz o antigo jornalista.

“Recordo um pequeno episódio simpático: quando chegámos ao aeroporto de Azerbaijão, aproximei-me dele e disse ‘Santo Padre, parabéns’. E ele disse-me ‘parabéns, porquê? Você, normalmente, dá-me os parabéns no final de uma viagem e não no início’. E eu respondi ‘parabéns porque, agora, consigo aqui, o número dos católicos subiu para 123’. Ele fartou-se de rir com isto.”

O episódio é revelador da intensidade com que João Paulo II cumpria a sua missão de pastor universal, uma vez que o seu critério não dependia da quantidade de fiéis: “O critério era sempre o mesmo: cada pessoa em particular. Ou seja, quer fossem 120, como no Azerbaijão, ou milhões, noutro país qualquer, ele ia sempre. Penso que esta sua característica de, perante uma grande multidão, não olhar para a multidão como tal, mas para cada uma daquelas pessoas em particular, é aquilo que explica a experiência de muita gente que ainda hoje diz: ‘eu senti que ele estava mesmo a olhar para mim, para mim concretamente, e não para aquela enorme massa de duas ou três milhões de pessoas’. Isto é porque o seu critério era o valor humano e espiritual de cada pessoa”.

Óptimo sentido de humor

E, no dia-a-dia, como era trabalhar com João Paulo II? “Era estupendo. Porque uma característica do seu carácter era o óptimo sentido de humor que ele tinha. Humanamente falando, era uma pessoa muito simpática. Por isso, trabalhar com ele era uma delícia, mesmo quando havia problemas sérios da Igreja universal ou de um país, mesmo assim, havia sempre espaço para o bom humor quando se trabalhava com ele.”

O facto de João Paulo II ter sido um comunicador nato ajudava, claro: “Naturalmente. Ele era um grande comunicador, mas a expressão ‘João Paulo II grande comunicador’, que é verdadeira, pode levar ao engano, porque, normalmente, quando se diz que uma pessoa é boa comunicadora, falamos de uma pessoa que tem uma boa voz, que tem um estilo de comunicar eficaz. Mas eu penso que a sua virtude como comunicador não estava principalmente no seu modo de comunicar, mas no conteúdo daquilo que comunicava. Eram aquelas verdades que ele comunicava que convenciam as pessoas e que faziam dele uma pessoa muito ouvida e muito seguida em todo o mundo.”

Tanto que, no fim do pontificado, mesmo sem conseguir falar, o Papa continuava a comunicar: “Do meu ponto de vista, nos últimos anos da sua vida estava a escrever a encíclica mais bela do seu pontificado, ou seja, uma encíclica ainda mais bela porque não a escrevia com palavras, mas com a sua própria vida. E as pessoas viam isso, o que não o afastava as pessoas mas aproxima-se delas ainda mais.”

Mas a forma como o Papa se expôs no seu estado mais debilitado, não agradou a todos e mereceu críticas inclusivamente de dentro da Igreja: “Isso são os teóricos, não as pessoas que vivem a vida mas os teóricos da existência! Sabe que a experiência humana mais universal, aquela experiência que, mais tarde ou mais cedo, conhecemos ou havemos de conhecer é o sofrimento. E desta experiência humana tão universal ele estava a dar o sentido que também a dor, os limites físicos, o não conseguir andar ou até mesmo no fim não poder falar, tudo tinha um sentido, nada daquilo era absurdo, mas tinha um grande sentido. E isso era a grande mensagem que Deus lhe tinha confiado para os seus últimos anos de vida.”

Ski às escondidas

Ao longo de quase 27 anos de pontificado, muitas foram as peripécias, quebras de protocolo, episódios divertidos, até então, pouco habituais na vida de um Papa. Navarro-Valls teve o privilégio de os testemunhar na primeira pessoa: “Agora penso que se pode contar tudo, já passaram tantos anos. Havia dias em que ele precisava, pela enorme quantidade de trabalho e pelo cansaço, tirar um dia da semana em que não havia audiências nem compromissos. Então, na véspera à noite, escolhíamos um carro não blindado, nem com a matrícula do Vaticano e saíamos por uma porta lateral do Vaticano em direcção à montanha. Pode imaginar às 18h, num dia de trabalho, como é o trânsito romano em hora de ponta? Aquele carro parava em todos os semáforos vermelhos da cidade e eu, que ia sentado ao lado do condutor, dizia: ‘De certeza que nos descobrem!’. E no entanto ninguém nos descobriu”.

Ainda por cima, explica o antigo director da sala de imprensa, o Papa pouco fazia para se disfarçar: “Ia vestido de branco com uma capa negra por cima, que era a capa que ele conservava desde que era jovem padre na Polónia. E isso tapava-o um pouco. Íamos para uma pequena cabana, relativamente próxima de Roma. Dormíamos lá e, na manhã seguinte, depois das orações matinais e da missa, íamos para a montanha fazer ski durante algumas horas. Como pode imaginar, eram ocasiões magníficas para estar com ele, para o acompanhar, para rir muito com ele e, depois, regressávamos tendo assim conseguido repousar um pouquinho. Agora, com o passar dos anos, a única pena que tenho é a de não ter feito isto mais vezes com ele.”

O fascínio de João Paulo II passava também pela sua normalidade. Continuou a fazer ski e montanhismo como na Polónia, mandou construir uma piscina para praticar desporto, convidava amigos para tomar refeições com ele, no Vaticano: “Ele era completamente normal. No processo de beatificação, que são cinco volumes enormes com os testemunhos de todas as pessoas que foram chamadas a depor e a dizer algo sobre a sua vida, há uma daquele presidente da Checoslováquia que era o Vaclav Havel, que já morreu. Ele não era um cristão praticante, mas faz uma declaração muito interessante, muito bonita. E diz no fim: ‘Eu não sou especialista em santidade mas, se eu tiver que dizer como era a sua santidade, eu diria que ele era humanamente santo’. É uma expressão quase ambígua e, no entanto, penso que ele queria dizer que a santidade de João Paulo II era muito humana, era ver uma pessoa, nas suas circunstâncias de cada dia, fazer tudo perfeitamente bem; não fazer nada de extraordinário nem de estranho.”

Amigo de Portugal

É sabido que o Papa tinha uma relação especial com Portugal, que começou no dia do atentado, a 13 de Maio de 1981. Por causa disso, gostava de repetir que a sua vida tinha sido salva por milagre de Nossa Senhora de Fátima. Foi nesse contexto que João Paulo II visitou três vezes o santuário da Cova da Iria.

Mas a grande admiração por Portugal não ficava por aí: “Ele via Portugal como um grande país com uma grande história que ele conhecia perfeitamente porque tinha lido muito sobre Portugal. Depois, havia a particularidade de Nossa Senhora de Fátima e a certeza que ele tinha de que a Nossa Senhora de Fátima lhe tinha salvo a vida num atentado que, segundo a lógica da medicina, devia tê-lo morto e, no entanto, não aconteceu assim.”

“Por isso, das vezes em que ele veio a Portugal, sentia-se em sua casa: antes de mais, como um filho que vem agradecer a Nossa Senhora, à sua ‘mamã’, mas ao mesmo tempo a um país com uma grande história que ele conhecia bem e que apreciava muito, quer os lugares de Portugal, quer fora do âmbito geográfico do país: a sua presença em África, no extremo Oriente, etc. Tudo isso estava bem presente nele.”

20 anos ao lado de um santo

Uma vida ao lado de João Paulo II, vivida ao longo mais de 20 anos, é uma experiência difícil de definir? “Naturalmente uma experiência extraordinária, uma experiência fora do comum; mas muitas vezes digo a mim mesmo que ter vivido ao lado de um santo não foi só uma coisa bonita, foi também uma grande responsabilidade. É uma grande responsabilidade porque não podes deixar que, tudo aquilo que viste, que viveste e que ele comunicou, fique arrumado na tua vida. É um desafio permanente a viver isto na própria vida.”

Um desafio de que tipo? “Um desafio ético, um desafio moral, um desafio para se aproximar mais de Deus, ou seja, penso que não podemos dizer de ninguém, nem de coisa nenhuma, que ‘isto é bom’, se esta afirmação não nos mudar por dentro; e deve mudar-nos por dentro senão não acreditamos, de verdade, que isso era bom e isto, por maioria de razão, pode-se dizer de João Paulo II: se acreditas a sério que ele era santo, esta convicção deve-te mudar por dentro, no teu interior.”

É isto que, segundo Navarro-Valls, explica a emoção que se sentiu quando João Paulo II morreu: “Naturalmente. Dantes, na história da Igreja até há poucos séculos, os santos eram proclamados por aclamação popular; era o povo que determinava quem era santo. Nos últimos séculos, a Igreja exigiu um processo de beatificação e de canonização. Mas, se a antiga tradição da Igreja ainda hoje vigorasse, João Paulo II teria sido santo no dia a seguir à sua morte e não tantos anos depois.”

Agora, Joaquín Navarro-Valls, hoje com 77 anos, prepara-se para viver o grande momento da canonização “Vivo, como direi, sem nenhuma surpresa porque eu já tinha a certeza de que ele era santo. Às vezes, aqui em Itália, oiço dizer a algumas pessoas que ‘a Igreja faz de João Paulo II santo’. Mas eu digo: ‘Não, a Igreja não faz João Paulo II santo; a Igreja confirma e ratifica que a vida deste homem quando era vivo, era a vida de um santo’. Porque, afinal de contas, ou um santo o é enquanto é vivo, ou nunca o será. Por isso, não é que agora o faça um santo, simplesmente confirma e ratifica que a vida desta pessoa - quando era viva - era a vida de um santo. É com este espírito que estarei na Praça de São Pedro”.

“E até já posso adiantar o que decidi dizer nesse dia a João Paulo II na minha oração, durante a canonização. Vou-lhe dizer: ‘Obrigado João Paulo II pela obra-prima que fizeste da tua vida, com a ajuda de Deus. Mas fizeste-a com a tua vida!”. Penso que será essa a minha oração nesse dia.

Joaquín Navarro-Valls foi director da sala de imprensa da Santa Sé durante 20 anos, sempre ao lado de João Paulo II. Duas décadas ao lado de um santo é uma experiência que deixa muitas marcas.

(aura miguel, Pag. 1, 2014.04.22)