13/08/2014

Quis experimentar a fadiga e o cansaço

Não sabes se será fraqueza física ou uma espécie de cansaço interior que se apoderou de ti, ou as duas coisas ao mesmo tempo... Lutas sem luta, sem o empenho de uma autêntica melhoria positiva, para pegar a alegria e o amor de Cristo às almas. Quero lembrar-te as palavras claras do Espírito Santo: só será coroado quem tiver lutado "legitime" – deveras! –, apesar dos pesares. (Sulco, 163)

A alegria, o optimismo sobrenatural e humano, são compatíveis com o cansaço físico, com a dor, com as lágrimas – porque temos coração –, com as dificuldades na nossa vida interior ou na tarefa apostólica.

Ele, "perfectus Deus, perfectus homo", perfeito Deus e perfeito homem, que tinha toda a felicidade do Céu, quis experimentar a fadiga e o cansaço, o pranto e a dor..., para que percebermos que para ser sobrenaturais temos de ser muito humanos. (Forja, 290)


Sempre que nos cansemos – no trabalho, no estudo, na tarefa apostólica – sempre que no horizonte haja trevas, então é preciso olhar Cristo: Jesus bom, Jesus cansado, Jesus faminto e sedento. Como te fazes compreender bem, Senhor! Como te fazes amar! Mostras-te igual a nós em tudo, excepto no pecado, para que sintamos que contigo poderemos vencer as nossas más inclinações e as nossas culpas. Efectivamente, não têm importância o cansaço, a fome, a sede, as lágrimas... Cristo cansou-se, passou fome, teve sede, chorou. O que importa é a luta – uma luta amável, porque o Senhor permanece sempre a nosso lado – para cumprir a vontade do Pai que está nos céus. (Amigos de Deus, 201)

Temas para meditar 204


Vida eterna


Agora é o tempo de misericórdia, depois será só tempo de justiça; por isso, agora é o nosso momento, depois será só o momento de Deus.



(são tomás de aquino Sobre o Credo 7 em escritos de catequese nr. 86)


Tratado da lei 83

Questão 107: Da comparação entre a lei nova e a antiga.

Em seguida devemos comparar a lei nova com a antiga.

E, sobre este ponto, discutem-se quatro artigos:
Art. 1 — Se a lei nova difere da antiga.
Art. 2 — Se a lei nova cumpriu a antiga.
Art. 3 — Se a lei nova está contida na antiga.
Art. 4 — Se a lei nova é mais onerosa do que a antiga.

Art. 1 — Se a lei nova difere da antiga.

[Supra, q. 91, a. 5 Ad Galat., cap. I, lect. II].

O primeiro discute-se assim. Parece que a lei nova não difere da antiga.

1. — Pois, uma e outra foram dadas para os que têm fé em Deus, conforme a Escritura (Heb 11, 6): sem fé é impossível agradar a Deus. Ora a fé tanto a tiveram os antigos como os modernos, conforme a Glosa. Logo, a lei é a mesma.

2. Demais. — Agostinho diz, que a pequena diferença entre a lei e o Evangelho é o temor e o amor. Ora, este e aquela não bastam para diversificar a nova lei da antiga, porque também esta estabelecia preceitos de caridade, como os seguintes (Lv 19, 18): Amarás a teu próximo (Dt 6, 5) Amarás ao Senhor teu Deus. Nem podem as duas leis se diversificar pela diferença assinalada por Agostinho: O Antigo Testamento prometia bens temporais, o Novo promete espirituais e eternos. Porque também o Novo promete alguns bens temporais, conforme se lê no Evangelho (Mr 10, 30): Receberá já de presente neste mesmo século o cento por um, das casas e dos irmãos, etc. E no Antigo Testamento esperava-se em promessas espirituais e eternas conforme o Apóstolo (Heb 11, 16): Agora aspiram outra pátria melhor, i. é, a celestial, referindo-se aos antigos patriarcas. Logo, a lei nova não difere da antiga.

3. Demais. — O Apóstolo parece distinguir uma lei da outra (Rm 3, 27), quando chama à lei antiga lei das obras, e à nova, lei da fé. Ora, segundo o mesmo, a lei antiga também era lei da fé (Heb 11, 39): Todos estão provados pelo testemunho da fé, referindo-se aos patriarcas do Velho Testamento. Semelhantemente, a lei nova, por sua vez, é a lei das obras, como diz o Evangelho (Mt 5, 44): Fazei bem aos que vos têm ódio e (Lc 22, 19): Fazei isto em memória de mim. Logo, a lei nova não difere da antiga.

Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Heb 7, 12): Mudado que seja o sacerdócio, é necessário que se faça também a mudança da lei. Ora, o sacerdócio do Novo Testamento difere do sacerdócio do Antigo, como o mesmo Apóstolo prova. Logo, a lei nova também difere da antiga.

Como já dissemos (q. 90, a. 2 q. 91, a. 4), toda lei ordena a vida humana para um fim. Ora, todas as coisas ordenadas para um fim podem diversificar-se de duplo modo, conforme a ideia do fim. De um modo, por se ordenarem a diversos fins e esta é uma diferença específica, sobretudo se o fim for próximo. De outro modo, pela proximidade ou afastamento do fim. Assim, é claro que os movimentos diferem especificamente segundo se ordenam para termos diversos. Mas, quando uma parte do movimento está mais próximo do termo que outra, elas entre si diferem, como o perfeito, do imperfeito.

Donde, podemos distinguir duas leis diversas. — Primeiro, como que absolutamente, enquanto ordenadas a fim diversos. Assim, a lei da cidade, que se ordenasse a servir ao governo do povo, seria especificamente diferente da que se ordenasse a servir aos melhores da cidade. — De outro modo, uma lei pode distinguir-se de outra por estar uma ordenada ao fim, mais proximamente e, a outra, mais remotamente. Assim, na cidade, uma é a lei imposta aos homens perfeitos, capazes de praticar logo o que respeita ao bem comum outra é a que manda ministrar ensino às crianças, que devem ser instruídas para mais tarde praticarem acções de homem.

Donde, devemos dizer que, do primeiro modo, a lei nova não difere da antiga, pois o fim de ambas é trazer o homem sujeito a Deus. Ora, o Deus do Novo e do Velho Testamento é o mesmo, conforme o Apóstolo (R 3, 30): Não há senão um Deus, que justifica pela fé os circuncidados e que também pela fé justifica os incircuncidados. De outro modo, a lei nova difere da antiga. Porque esta era como um pedagogo de crianças, no dizer do Apóstolo (Gl 3, 24). Ao passo que a lei nova é a perfeição, lei da caridade, da qual diz o Apóstolo (Cl 3, 14), que é o vínculo da perfeição.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — A unidade da fé em ambos os Testamentos prova a unidade do fim. Pois, como já dissemos (q. 62, a. 2), o objecto das virtudes teologais, entre as quais está a fé, é o fim último. Contudo, uma era a função da fé na antiga lei, e outra, a na lei nova. Pois, o que os antigos criam como futuro, nós cremos como realizado.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Todas as diferenças assinaladas entre a lei nova e a velha fundam-se nas ideias de perfeito e de imperfeito. Pois os preceitos de toda lei são dados para regular os actos virtuosos. Ora, para praticar tais actos, os imperfeitos, ainda sem o hábito da virtude, agem de um modo, e os que já são perfeitos por esse hábito de outro. Assim, os que ainda não tem o hábito da virtude são levados a praticar actos virtuosos por uma causa extrínseca, p. ex., por causa da cominação de penas ou pela promessa de algumas remunerações extrínsecas, como a honra, as riquezas, ou coisas semelhantes. Por isso a lei antiga, dada para imperfeitos, i. é, que ainda não tinham conseguido a graça espiritual, era chamada lei do temor, porque levava à observância dos preceitos pela cominação de determinadas penas, e dela se diz que fazia algumas promessas temporais. Os que tem virtudes, porém, são levados a praticá-la por amor da mesma, e não por qualquer pena ou remuneração extrínseca. Donde, a lei nova que é a principal, por consistir na própria graça espiritual, infundida nos corações, chama-se lei do amor. E a Escritura diz que ela promete bens espirituais e eternos, que são os objectos da virtude, principalmente da caridade, que por isso tende para esses bens, não como algo de extrínseco, senão de próprio. E também por isso se diz que a lei eterna coibia as mãos e não, a alma. Porque, quem se abstém do pecado, por temor da pena, não afasta a sua vontade do pecado, absolutamente falando, como o faz a vontade do que se abstém por amor da justiça. E por isso se diz que a lei nova que é a lei do amor, coíbe a alma. — Houve porém no regime do Velho Testamento, quem, tendo a caridade e a graça do Espírito Santo, esperava principalmente as promessas espirituais e eternas, e portanto pertencia ao regime da lei nova. E semelhantemente há no regime do Novo Testamento alguns homens carnais, que ainda não alcançaram a perfeição da lei nova. E esses, embora desse regime, tornam necessário que sejam levados às obras virtuosas pelo temor das penas e por meio de certas promessas temporais. A lei antiga, porém, não obstante esses preceitos de caridade, não os dava por ela o Espírito Santo, por quem está derramada a caridade em nossos corações, como diz a Escritura (Rm 5, 5).

RESPOSTA À TERCEIRA. — Como já dissemos (q. 106, a. 1, 2), a lei nova é chamada lei da fé por consistir, principalmente, na graça mesma, dada internamente aos crentes daí o denominar-se graça da fé. Secundariamente, ela contém alguns actos morais e sacramentais, que não lhe constituem a parte principal, como constituíam a parte principal da lei antiga. Mas os que, no regime do Velho Testamento, foram, pela fé, aceites por Deus, pertenceram por isso ao Novo Testamento. Pois, não se justificaram senão pela fé em Cristo, autor do Novo Testamento. Donde, de Moisés diz o Apóstolo (Heb 11, 26): Tinha por maiores riquezas o opróbrio de Cristo que os tesouros dos egípcios.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


Evang.; Coment.; Leit. Esp. (Magistério - Ratzinguer)

Tempo comum XIX Semana

Evangelho: Mt 18, 15-20

15 «Se teu irmão pecar contra ti, vai e corrige-o entre ti e ele só. Se te ouvir, ganhaste o teu irmão. 16 Se, porém, não te ouvir, toma ainda contigo uma ou duas pessoas, para que pela palavra de duas ou três testemunhas se decida toda a questão. 17 Se não as ouvir, di-lo à Igreja. Se não ouvir a Igreja considera-o como um gentio e um publicano. 18 «Em verdade vos digo: Tudo o que ligardes sobre a terra, será ligado no céu; e tudo o que desligardes sobre a terra, será desligado no céu. 19 «Ainda vos digo que, se dois de vós se unirem entre si sobre a terra a pedir qualquer coisa, esta lhes será concedida por Meu Pai que está nos céus. 20 Porque onde se acham dois ou três reunidos em Meu nome, aí estou Eu no meio deles».

Comentário:

A “força” da oração ganha uma importância notável quando feita em conjunto. Talvez estejamos muito habituados a rezar sozinhos pedindo coisas que julgamos precisar e, isso leva-nos não poucas vezes, a um excessivo egocentrismo.

Sem prescindir ou descartar a oração pessoal, a oração mental, a meditação pessoal – formas, diria, avançadas e excelentes de oração em que o espírito se foca naquele a Quem nos dirigimos – a oração comunitária faz parte, deve fazer parte, da vida do cristão. A Igreja é uma comunidade viva e actuante em que todos se unem à volta do Chefe, do Guia, do Redentor.

Por isso a Igreja clama constantemente pela unidade dos cristãos ou seja, que «todos sejam um como o Filho e o Pai são Um»

(ama, comentário sobre Mt 18, 15-20, Carvide, 2013.08.14)

Leitura espiritual



Magistério

cardeal joseph ratzinger

Algumas perguntas pessoais

…/5

Viver as virtudes.

Creio que todo o mundo gostaria de saber como ter uma vida correcta, [...], como levá-la ao cume sentindo-se à vontade consigo mesmo. Antes de morrer, o grande actor Cary Grant deixou à sua filha Jennifer uma carta de despedida comovente. Quis dar-lhe nela algumas recomendações adicionais para o caminho.

"Queridíssima Jennifer," escreveu, "viva a sua vida plenamente, sem egoísmo. Seja comedida, respeite o esforço dos outros. Esforce-se por conseguir o melhor [...].

Mantenha puro o juízo e limpa a conduta". E prosseguia: "Dê graças a Deus pelo rosto das pessoas boas e pelo doce amor que há por trás dos seus olhos... Pelas flores que ondulam ao vento... Um breve sono e despertarei para a eternidade. Se não despertar como nós o entendemos, então continuarei a viver em você, filha queridíssima".

De certa forma, soa a católico. Seja como for, é uma carta belíssima. Se [Cary Grant] era católico ou não, não sei, mas certamente é a expressão de uma pessoa que se tornou sábia e compreendeu o significado do bem, e tenta transmiti-lo, além disso, com uma assombrosa amabilidade [i].

Valores espirituais


Redenção e Liberdade humana. Constitui, por assim dizer, a estrutura da aventura da Redenção que ela sempre diga respeito à liberdade. Por isso, [a Redenção] nunca é simplesmente imposta do exterior ou cimentada em estruturas fixas, mas está inserida no frágil vaso da liberdade humana. [...] Como está ligada à liberdade e não é coisa que se possa impor ao homem por meio de estruturas, volta sempre a reportar-se a essa liberdade e, através dela, também pode, até certo ponto, ser destruída.

Mas temos de reconhecer que o cristianismo libertou uma e outra vez grandes forças de amor. Quando se considera o que realmente entrou na História graças ao cristianismo, vemos que é notável. Goethe disse: "Surgiu o respeito profundo pelo que se encontra abaixo de nós". Na realidade, somente através do cristianismo é que se desenvolveu uma assistência organizada aos doentes, o amparo aos fracos e toda uma organização de amor.
Através do cristianismo cresceu, aliás, o respeito por todas as pessoas em todas as situações sociais. É interessante observar que o imperador Constantino, ao reconhecer o cristianismo, se tenha sentido primeiro na obrigação de modificar as leis para introduzir o domingo como feriado universal e que tenha procurado garantir certos direitos aos escravos.

Lembro-me também, por exemplo, de Atanásio, o grande bispo alexandrino do século IV, que narra, a partir da sua própria experiência, como as tribos se enfrentavam com violência em toda a parte, até que, através dos cristãos, surgiu uma certa disposição para a paz. Isso não são coisas que estejam garantidas por si mesmas através da estrutura de um império político: podem, como observamos hoje, tornar a desmoronar uma e outra vez.

Quando o homem abandona a fé, os horrores do paganismo regressam com toda a força.

Julgo que pudemos de facto constatar que Deus entrou na História, por assim dizer, de modo muito mais frágil do que gostaríamos. Mas também pudemos constatar que essa é a sua resposta à liberdade. E se queremos [...] que Deus respeite a nossa liberdade, também temos de aprender a respeitar e a amar a fragilidade da sua ação [ii].

Vocação.

A minha vida tem de ser como a da Madre Teresa?

É uma possibilidade. Mas as vocações são muito variadas. Nem todo o mundo deve ser uma Madre Teresa. Também um grande cientista, um grande erudito, um músico, um simples artesão ou um operário podem ter uma vida plena, pois são pessoas que vivem a sua existência com honradez, lealdade e humildade... [...] Cada vida traz consigo a sua própria vocação, tem o seu próprio código e o seu próprio caminho.
Ninguém é uma mera imitação obtida com um molde, mais um entre uma profusão de exemplares iguais. E cada pessoa necessita também de coragem criativa para viver a sua vida e não se converter numa cópia dos outros.

O senhor lembrar-se-á da parábola do servo preguiçoso, que enterra o seu talento para que nada aconteça com ele, e compreenderá o que quero dizer. Trata-se de um homem que se nega a assumir o risco da existência, a desfraldar toda a sua originalidade e a expô-la às ameaças que isso necessariamente traz consigo [iii].

A vontade de Deus para nós.

O que Deus realmente quer de nós?


Quer que nos tornemos pessoas que amam, porque então somos imagens dEle. Porque Ele é, como nos diz São João, o Amor, e quer que haja criaturas que sejam semelhantes a Ele; criaturas que, a partir da liberdade do seu amor, se tornem como Ele e lhe pertençam e, desse modo, irradiem, por assim dizer, a luz dEle próprio [iv].

Fé, esperança e caridade. A fé é, primeiro, a raiz através da qual se desenvolve a vida, a decisão fundamental de perceber Deus e de o aceitar. E é a chave graças à qual se explica tudo o mais.

Essa fé significa esperança, porque, do modo como é, o mundo não é bom sem mais e não devia continuar a ser como é. Quando se olha para ele de um ponto de vista empírico, poder-se-ia pensar que o mal é a principal força no mundo. Esperar, num sentido cristão, significa conhecer a existência do mal e, apesar disso, olhar com confiança para o futuro. A fé assenta, essencialmente, em aceitar o facto de que se é amado por Deus. Não significa, portanto, apenas dizer-lhe sim, mas significa dizer sim à Criação, às criaturas, sobretudo ao homem: é procurar ver em cada um a imagem de Deus e tornar-se, desse modo, uma pessoa que ama.

Isto não é fácil. Mas graças ao sim fundamental [da fé], graças à convicção de que Deus criou o homem e o apoia, [...] o amor pode encontrar a sua razão de ser e fundamentar a esperança a partir da fé. Nessa medida, a esperança contém o elemento de confiança perante a nossa História ameaçada, mas nada tem a ver com utopia; o objecto da esperança não é o mundo melhor do futuro, mas a vida eterna. A expectativa de um mundo melhor não resolve nada, porque esse não é o nosso mundo, e cada um tem de viver com o seu mundo, com a dimensão do seu próprio presente. O mundo das gerações futuras será marcado pela liberdade dessas gerações e só pode ser determinado por nós de modo muito limitado. Mas a vida eterna é o meu futuro e, portanto, a força que marca a História [v].

Viver de fé: o Sermão da Montanha. Jesus queria mostrar o caminho às pessoas, os pontos de apoio correctos para uma vida plena [...]. Certa vez, subiu a uma montanha, e o seu sermão abriu, de certa forma, um novo capítulo.

Não há dúvida de que o Sermão da Montanha ocupa um lugar simbólico.
Mais ainda: com esse sermão, irrompe uma nova etapa da humanidade, que é possível porque Deus se une aos homens. Ele não se situa apenas no mesmo nível que Moisés, o que, para os ouvintes, certamente já não era fácil de assimilar, mas fala das alturas do autêntico legislador, do próprio Deus. Neste sentido, o Sermão da Montanha é, em muitos aspectos, a expressão mais vigorosa da sua reivindicação divina [como Filho de Deus]; o Senhor afirma que, a partir desse momento, a Lei do Antigo Testamento encontra a sua mais profunda explicação e a sua vigência universal, não por uma intervenção humana, mas graças ao próprio Deus.

As pessoas compreendem isso. E percebem também com muita força, digamos, o duplo aspecto do Sermão da Montanha: que essa mensagem traz consigo uma nova intimidade, um novo amadurecimento e bondade, uma libertação daquilo que é apenas superficial e externo; e, ao mesmo tempo, um novo nível de exigência, uma exigência tão fora de proporções que quase esmaga a pessoa.

Quando o Senhor diz: "Já não vos digo apenas: Não podes cometer adultério, mas nem sequer olhar a mulher com desejo"; quando diz: "Não somente não matarás, como nem sequer guardarás rancor ao próximo"; e quando diz: "Não basta o olho por olho e dente por dente, mas, quando alguém te bater numa das faces, oferece-lhe a outra", somos confrontados com uma exigência que, embora dotada de uma grandeza que provoca admiração, parece desmedida para o ser humano. Ou pelo menos o seria, se Jesus Cristo já não a tivesse experimentado antes e se não fosse uma consequência do encontro pessoal com Deus. Aqui vemos realmente a condição divina de Cristo: não é mais outro enviado [de Deus], mas o definitivo, e nEle se manifesta o próprio Deus [vi].

Preocupações. No Sermão da Montanha, fala-se literalmente de verdadeiras e falsas preocupações. Cristo diz que não devemos preocupar-nos com a comida ou com o que vestiremos, porque a vida é mais importante que o alimento ou a roupa. Soa bem, mas quem seguisse essas recomendações provavelmente morreria em pouco tempo.

Num mundo baseado no planeamento do futuro e na pretensa melhora mediante a previsão, isto é, mediante a "preocupação", essas recomendações tornaram-se inteiramente incompreensíveis. Penso que é preciso ler o texto com muita atenção, e então encontramos a chave dentro dele mesmo. Pois Jesus também diz: "Buscai primeiro o reino de Deus, e tudo o mais vos será dado por acréscimo". Ou seja, há uma ordem de prioridades. Se excluirmos a primeira, concretamente a presença de Deus no mundo, por mais que façamos e por mais útil que seja [o que fizermos], de certa forma há-de escorrer-nos dentre as mãos.

Penso que o importante é: primeiro, o reino de Deus. Esta deve ser a preocupação essencial que estruture a partir de dentro, a partir do reino de Deus, as demais preocupações. Como é natural, não é que simplesmente nos nasçam asas. Preocupamo-nos pelo dia seguinte, de que o mundo continue a progredir, etc. Mas essas
preocupações tornam-se mais leves quando se subordinam à primeira. E vice-versa.

Em certa ocasião, Jesus disse: "Entrai pela porta estreita, porque larga é a entrada e espaçoso o caminho que leva à perdição, e são muitos os que entram por ela; mas como é estreita a entrada e como é apertado o caminho que leva à vida, e quão poucos são osque o encontram!"

Dessas palavras, seria preciso deduzir que o inferno está repleto e o céu meio vazio.

Elas representam, na realidade, uma advertência muito pragmática: quando se faz o que todos fazem, quando se segue o caminho da comodidade, o caminho amplo, de momento isso pode parecer mais agradável, mas a pessoa afasta-se da verdadeira vida.

Ou seja, a decisão correcta é escolher o caminho difícil. O mero deixar-se levar, o mero nadar a favor da corrente, o submergir na massa, em última análise sempre nos conduz à massa e depois ao vazio. É o valor da ascensão, daquilo que é árduo, o que me põe no bom caminho [vii].


Vida de oração


Oração. Desde que a humanidade existe, as pessoas rezam. Sempre e em toda a parte têm tido consciência de não estarem sós no mundo, de que há Alguém que as escuta.

Sempre têm tido consciência de precisarem de um Outro que é maior do que elas, e de que precisam esforçar-se por alcançá-lo se quiserem que a sua vida seja o que deve ser.

Mas o rosto de Deus sempre esteve velado, e só Jesus nos mostrou a sua verdadeira face: quem o vê, vê o Pai (cfr. Jo 14, 9).

Se, por um lado, é natural que rezemos (que peçamos no momento da necessidade e agradeçamos no momento da alegria), por outro experimentamos também a nossa incapacidade de orar e de falar com um Deus oculto: Não sabemos pedir o que nos convém, diz São Paulo (Rom 8, 26). Portanto, sempre deveríamos dizer ao Senhor, como os discípulos: Senhor, ensina-nos a orar (Lc 11, 1).

O Senhor ensinou-nos o Pai-Nosso como modelo de autêntica oração, e deu-nos uma Mãe, a Igreja, que nos ajuda a rezar. A Igreja recebeu um enorme tesouro de orações da Sagrada Escritura, e ao longo dos séculos surgiram também, dos corações dos fiéis, inúmeras orações que nos permitem renovar sempre o modo como nos dirigimos a Deus. Rezando com a nossa Mãe, a Igreja, aprendemos a rezar [viii].

Ajoelhar-se.

Existem ambientes, não pouco influentes, que tentam convencer-nos de que não há necessidade de ajoelhar-se. Dizem que é um gesto que não se adapta à nossa cultura (mas, a qual se adapta então?); que não é conveniente para o homem maduro, que vai ao encontro de Deus e se apresenta erguido. [...] Pode ser que a cultura moderna
não compreenda o gesto de ajoelhar-se, na medida em que é uma cultura que se afastou da fé e já não conhece Aquele diante de quem ajoelhar-se é o único gesto adequado, e, mais ainda, um gesto interiormente necessário.
Quem aprende a crer também aprende a ajoelhar-se. Uma fé ou uma liturgia que não conhecessem o acto de pôr-se de joelhos estariam doentes num ponto central [ix].

Sentido social da oração.

Pensamos que a oração é algo intimista. Já não temos muita fé - parece-me - no efeito real, histórico, da oração.

Devemos, muito pelo contrário, convencer-nos de que este compromisso espiritual que une o céu e a terra tem uma grande força intrínseca. E um meio para chegar ao estabelecimento da justiça é precisamente comprometer-se a orar, porque desta maneira a oração se transforma numa educação de mim mesmo e do outro para a justiça.

Devemos, em resumo, aprender, reaprender o sentido social da oração [x].

Oração e meditação transcendental.

Diante da busca actual pela espiritualidade, muita gente recorre à meditação transcendental [xi].

Que diferença há entre a meditação transcendental e a meditação cristã?

Em poucas palavras, diria que a essência da meditação transcendental é que o homem se expropria do próprio eu, se une à "essência universal do mundo"; portanto, fica um pouco despersonalizado. Pelo contrário, na meditação cristã, não perco a minha personalidade, entro numa relação íntima com a pessoa de Cristo, entro em relação com o "Tu" de Cristo, e assim o meu "eu" não se perde, mantém a sua identidade e responsabilidade. Ao mesmo tempo, abre-se, entra numa unidade mais profunda, a unidade do amor, que não destrói.

Portanto, diria, simplificando um pouco, que a meditação transcendental é impessoal e, neste sentido, "despersonalizante", ao passo que a meditação cristã é "personalizante" e abre a pessoa a uma unidade profunda, que nasce do amor e não da dissolução do eu [xii].

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





Notas:
[i] Entrevista a Jaime Antúnez Aldunate
[ii] O sal da terra, págs. 173-175
[iii] La fe, de tejas abajo
[iv] O sal da terra, pág. 223
[v] Ibid., págs. 94-95
[vi] La fe, de tejas abajo
[vii] Ibid
[viii] Introdução a Chi prega se salva, 30Giomi, Roma, 18.02.2005
[ix] El espíritu de Ia liturgia, cit. por Alfa e Omega, 18.10.2001
[x] Alocução, Belluno, Itália, out 2004
[xi] Técnica proposta pelas religiões orientais (hindufsmo, budismo) e que delas passou para inúmeras seitas e grupos New Age; visa atingir o completo esvaziamento interior, a total ausência de desejos e sofrimentos, a fim de preparar a pessoa para a dissolução do seu "eu" no nirvana (N. do T.)
[xii] El relativismo, nuevo rostro de Ia intolerância