03/11/2014

E não dizem sempre a mesma coisa os que se amam?...

O Santo Rosário é arma poderosa. Emprega-a com confiança e maravilhar-te-ás do resultado. (Caminho, 558)

O princípio do caminho, que tem por fim a completa loucura por Jesus, é um confiado amor a Maria Santíssima.

– Queres amar a Virgem? – Pois então conversa com Ela! – Como? – Rezando bem o Rosário de Nossa Senhora.

Mas, no Rosário... dizemos sempre o mesmo! – Sempre o mesmo? E não dizem sempre a mesma coisa os que se amam?... Se há monotonia no teu Rosário, não será porque, em vez de pronunciares palavras, como homem, emites sons, como animal, estando o teu pensamento muito longe de Deus? – Além disso, repara: antes de cada dezena, indica-se o mistério a contemplar – Tu... já alguma vez contemplaste esses mistérios?

Faz-te pequeno. Vem comigo, e viveremos (este é o nervo da minha confidência) a vida de Jesus, de Maria e de José.


Todos os dias Lhes havemos de prestar um novo serviço. Ouviremos as Suas conversas de família. Veremos crescer o Messias. Admiraremos os Seus trinta amos de obscuridade... Assistiremos à Sua Paixão e Morte... Pasmaremos ante a glória da Sua Ressurreição... Numa palavra: contemplaremos, loucos de Amor (não maior amor que o Amor), todos e cada um dos instantes de Cristo Jesus. (Santo Rosário, Introdução)

Temas para meditar - 260


Doença

É necessário sofrer com paciência não só o estar doente, mas o ter a doença que Deus quer, entre as pessoas que quer e com as incomodidades que quer, e o mesmo digo das demais tribulações.



(SÃO Francisco de Sales, Introdução à Vida Devota, III, 3.) 

Tratado do verbo encarnado 18

Questão 3: Da união relativamente à pessoa que assumiu

Em seguida devemos tratar da união relativamente à pessoa que assumiu.

E nesta questão discutem-se oito artigos:

Art. 1 — Se à Pessoa divina convém assumir a natureza criada.
Art. 2 — Se à natureza divina convém assumir.
Art. 3 — Se, abstraída a personalidade pelo intelecto, a natureza pode assumir.
Art. 4 — Se uma Pessoa pode assumir a natureza criada, sem assumir outra.
Art. 5 — Se alguma outra Pessoa divina, que não a Pessoa do Filho, podia ter assumido a natureza humana.
Art. 6 — Se duas Pessoas divinas poderiam assumir uma natureza numericamente a mesma.
Art. 7 — Se uma mesma Pessoa divina pode assumir duas naturezas humanas.
Art. 8 — Se era mais conveniente ter-se encarnado o Filho de Deus, que o Pai ou o Espírito Santo.

Art. 1 — Se à Pessoa divina convém assumir a natureza criada.

O primeiro discute-se assim. — Parece que não convém a Pessoa divina assumir a natureza criada.

1. — Pois, uma Pessoa divina significa um ser perfeito em sumo grau. Ora, perfeito é aquilo a que não se pode fazer nenhum acréscimo. Mas, sendo assumir o tomar para si. (ad se sumerey), de modo a ficar o assumido acrescentado ao que assume, parece que à Pessoa divina não convém assumir a natureza criada.

2. Demais. — O ser para o qual um outro é assumido comunica-se de certo modo ao primeiro, assim, uma dignidade comunica-se a quem foi a ela elevada. Ora, a pessoa é por natureza incomunicável, como se disse na Primeira Parte. Logo, não convém à Pessoa divina assumir, isto é, tomar para si. (ad se sumere).

3. Demais. — A pessoa é constituída pela natureza. Ora, é inconveniente que o constituído assuma o constituinte, porque o efeito não age sobre a sua causa. Logo, não convém à Pessoa assumir a natureza.

Mas, em contrário, Agostinho diz: Esse Deus, isto é, o Unigénito, recebeu a forma, isto é, a natureza do servo, na sua Pessoa. Ora, o Deus Unigénito é uma Pessoa. Logo, à Pessoa convém receber a natureza, o que é assumi-la.

A palavra assunção implica duas coisas, isto é, o princípio e o termo do acto, pois, assumir é como tomar para si (ad se sumeres). Ora, dessa assunção a Pessoa é o princípio e o termo. O princípio, porque à pessoa propriamente cabe o agir, ora, essa assunção da carne foi feita pela pessoa divina. Semelhantemente, também a Pessoa é o termo dessa assunção, pois, como se disse, a união fez-se na Pessoa, não na natureza. Donde é claro que apropriadamente cabe à Pessoa assumir a natureza.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — Sendo a Pessoa divina infinita, não se lhe pode fazer nenhuma adição. Por isso Cirilo diz: Nós não entendemos esse modo de união como uma ???, Assim como na união do homem com Deus, pela graça de adopção, nada se acrescenta a Deus, mas, o divino opõe-se ao homem. Donde não é Deus, mas o homem, quem se aperfeiçoa.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Dizemos que a pessoa é incomunicável, por não poder ser predicada de muitos supostos. Mas, nada impede que da pessoa se façam muitas predicações. Donde, não é contra a essência da pessoa comunicar-se de modo que subsista em várias naturezas. Pois, também na pessoa criada podem acidentalmente concorrer várias naturezas, assim como a pessoa de um determinado homem tem quantidade e qualidade. Mas, por causa da sua infinidade, é próprio da divina Pessoa, que nela exista o concurso das naturezas, não acidentalmente, mas segundo a subsistência.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Como se disse, a natureza humana não constitui a Pessoa divina, absolutamente falando, mas constitui-a enquanto denominada por uma tal natureza. Assim, não é da natureza humana que o Filho de Deus tira a sua existência absoluta, pois já existia abeterno, mas só a sua existência humana. Mas, segundo a natureza divina a Pessoa divina é constituída de modo absoluto. Donde, não dizemos da Pessoa divina que assumiu a natureza divina, mas a humana.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


Evangelho diário, coment. Leit espiritual (História de uma alma)

Tempo comum XXXI Semana

Evangelho: Lc 14 12-14

12 Dizia mais àquele que O tinha convidado: «Quando deres um almoço ou um jantar, não convides os teus amigos, nem os teus irmãos, nem os teus parentes, nem os vizinhos ricos; para que não aconteça que também eles te convidem e te paguem com isso. 13 Mas, quando deres algum banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos, os cegos; 14 e serás bem-aventurado, porque esses não têm com que retribuir-te; mas ser-te-á isso retribuído na ressurreição dos justos».

Comentário

Do que aqui se trata é a aplicação prática do aforismo popular: "fazer o bem sem olhar a quem".

Isto implica, antes de mais, um verdadeiro sentido de desprendimento no que ao próximo se refere e, também, uma postura séria na consideração que todos nos devem merecer independentemente dos laços que possam unir-nos e da sua condição social ou outra.

(ama, comentário sobre Lc 14, 12-14 2013.11.04)


Leitura espiritual



HISTÓRIA DE UMA ALMA

Santa Teresinha do Menino Jesus 

Manuscrito "A" - Parte III

…/4

Nessa noite de luz, começou o terceiro período da minha vida, o mais bonito de todos, o mais cheio das graças do Céu... Num instante, a obra que eu não pude cumprir em dez anos, Jesus a fez contentando-se com a boa vontade que nunca me faltara. Como os apóstolos, podia dizer-Lhe: "Senhor, pesquei a noite toda sem nada pegar". Ainda mais misericordioso comigo do que com os discípulos, Jesus pegou Ele mesmo a rede, lançou-a e retirou-a cheia de peixes... Fez de mim um pescador de almas, senti um desejo imenso de trabalhar pela conversão dos pecadores, desejo que não sentira tanto antes... Em suma, senti a caridade entrar no meu coração, a necessidade de me esquecer para agradar e, desde então, fiquei feliz!... Num Domingo, ao olhar uma foto de Nosso Senhor na Cruz, fiquei impressionada com o sangue que caía de uma das suas mãos divinas. Senti grande aflição pensando que esse sangue caía no chão sem que ninguém se apressasse em recolhê-lo. Resolvi ficar, em espírito, ao pé da Cruz para receber o divino orvalho que se desprendia, compreendendo que precisaria, a seguir, espalhá-lo sobre as almas... O grito de Jesus na Cruz ressoava continuamente em meu coração: "Tenho sede!" Essas palavras despertavam em mim um ardor desconhecido e muito vivo... Queria dar de beber a meu Bem-amado e sentia-me devorada pela sede das almas... Ainda não eram as almas dos sacerdotes que me atraíam, mas as dos grandes pecadores. Ardia do desejo de arrancá-los às chamas eternas...

Para estimular o meu zelo, Deus mostrou-me que os meus desejos lhe eram agradáveis. Ouvi falar de um grande criminoso que acabava de ser condenado à morte por crimes horríveis. Tudo fazia crer que morreria impenitente. Quis, a qualquer custo, impedi-lo de cair no inferno"'. Para conseguir, usei de todos os meios imagináveis: sentindo que, de mim mesma, nada poderia, ofereci a Deus os méritos infinitos de Nosso Senhor, os tesouros da santa Igreja, enfim, pedi a Celina para mandar celebrar uma missa nas minhas intenções, não ousando pedi-la eu mesma, temendo ser obrigada a dizer que era para Pranzini, o grande criminoso. Não queria, tampouco, dizê-lo a Celina, mas insistiu com tanta ternura que lhe confiei meu segredo; longe de zombar de mim, pediu para ajudar a converter o meu pecador. Aceitei com gratidão, pois teria desejado que todas as criaturas se unissem a mim para implorar a graça para o culpado. No fundo do meu coração, tinha certeza de que nossos desejos seriam atendidos. Mas, a fim de ter coragem para continuar a rezar pelos pecadores, disse a Deus estar segura de que Ele perdoaria o pobre infeliz Pranzini, que acreditaria mesmo que não se confessasse e não desse sinal nenhum, de arrependimento, enorme era minha confiança na misericórdia infinita de Jesus, mas pedia-lhe apenas um sinal de arrependimento, para meu próprio consolo... A minha oração foi atendida ao pé da letra! Apesar da proibição de papai de lermos jornais, não pensava desobedecer lendo as passagens que falavam de Pranzini. No dia seguinte à sua execução, cai-me às mãos o jornal La Croix. Abro-o apressada e o que vejo?... Ah! As minhas lágrimas traíram a minha emoção e fui obrigada a me esconder... Pranzini não se confessou, subiu ao cadafalso e preparava-se para colocar a cabeça no buraco lúgubre quando, numa inspiração repentina, virou-se, apanhou um Crucifixo que lhe apresentava o sacerdote e beijou por três vezes suas chagas sagradas!... Sua alma foi receber a sentença misericordiosa Daquele que declarou que no Céu haverá mais alegria por um só pecador arrependido do que por 99 justos que não precisam de arrependimento!...

Obtive o "sinal" pedido, e esse sinal era a reprodução fiel das graças que Jesus me fizera para atrair-me a rezar pelos pecadores. Não foi diante das chagas de Jesus, vendo cair o seu sangue divino, que a sede de almas entrou no meu coração? Queria dar-lhes de beber esse sangue imaculado que devia purificá-las das suas sujeiras, e os lábios do "meu primeiro filho" foram colar-se às chagas sagradas!!!... Que resposta indizivelmente doce!... Ah! desde essa graça única, o meu desejo de salvar as almas cresceu a cada dia. Parecia-me ouvir Jesus dizendo como para a samaritana: "Dê-me de beber!" Era uma verdadeira troca de amor; às almas, eu dava o sangue de Jesus; a Jesus, oferecia essas mesmas almas refrescadas pelo seu divino orvalho. Dessa forma, eu parecia desalterá-lo e mais lhe dava de beber, mais a sede da minha pequena alma aumentava e era essa sede ardente que Ele me dava como a mais deliciosa bebida do seu amor...

Em pouco tempo, Deus conseguira fazer-me sair do círculo apertado no qual eu girava sem encontrar saída. Vendo o caminho que Ele me fizera percorrer, a minha gratidão é grande, mas preciso convir que, se o passo maior fora dado, muitas coisas restavam ainda a abandonar. Livre dos escrúpulos, da sua sensibilidade excessiva, o meu espírito desenvolveu-se. Sempre gostara do grandioso, do belo, mas naquela época fui tomada de um desejo extremo de saber. Não satisfeita com as lições e as tarefas que a minha mestra me dava, dedicava-me, sozinha, a estudos especiais de história e de ciências. Os outros estudos deixavam-me indiferente, mas essas duas áreas atraíam a minha atenção. Em poucos meses, adquiri mais conhecimentos que durante meus anos de estudos. Ah! isso só era vaidade e aflição de espírito... O capítulo da Imitação em que se fala das ciências voltava à minha mente, mas achava o meio de prosseguir assim mesmo, dizendo-me que, estando na idade de estudar, não havia mal nenhum em fazê-lo. Não creio ter ofendido a Deus (embora reconheça ter passado nisso um tempo inútil), pois só ocupava um certo número de horas que não queria ultrapassar a fim de mortificar meu desejo excessivo de saber... Estava na mais perigosa idade para as moças, mas Deus fez por mim o que relata Ezequiel em suas profecias: "passando perto de mim, Jesus viu que havia chegado para mim o tempo de ser amada, Ele fez aliança comigo e passei a ser sua... Estendeu sobre mim seu manto, lavou-me em perfumes preciosos, revestiu-me de roupas bordadas, dando-me colares e joias sem preço... Alimentou-me com a mais pura farinha, com mel e azeite abundante... então passei a ficar bela aos olhos Dele e fez de mim uma poderosa rainha!..."

Sim, Jesus fez tudo isso para mim, poderia retomar cada palavra do que acabo de escrever e provar que se realizou em meu favor, mas as graças que relatei acima são prova suficiente. Vou apenas falar da alimentação que me prodigalizou "com abundância". Havia muito que me alimentava da "pura farinha" contida na Imitação, era o único livro que me fazia bem, pois ainda não havia achado os tesouros escondidos no Evangelho. Sabia de cor quase todos os capítulos da minha querida Imitação, nunca me desfazia desse livrinho. No verão, levava-o no bolso; no inverno, no meu regalo. O hábito tornou-se tradicional e, na casa da minha tia, divertiam-se muito abrindo-o ao acaso e fazendo-me recitar o capítulo que se apresentava aos olhos. Aos 14 anos, com o meu desejo de ciência, Deus achou necessário acrescentar "à pura farinha mel e azeite em abundância". Esse mel e esse azeite, fez-me encontrá-los nas conferências do padre Arminjon, sobre o fim do mundo actual e os mistérios do mundo futuro. Esse livro havia sido emprestado a papai pelas minhas queridas carmelitas; por isso, contrariamente a meus hábitos (pois eu não lia os livros de papai), pedi para lê-lo.

Essa leitura foi ainda uma das maiores graças da minha vida. Fi-la à janela do meu quarto de estudo e a impressão que tive é por demais íntima e doce para que possa expressá-la...

Todas as grandes verdades da religião, os mistérios da eternidade, mergulhavam a minha alma numa felicidade que não era da terra... Já pressentia o que Deus reserva a quem o ama (não com o olho do homem, mas com o do coração) e, vendo que as recompensas eternas não tinham proporção alguma com os leves sacrifícios da vida, quis amar, amar Jesus com paixão, pedir-lhe mil marcas de amor, enquanto ainda podia... Copiei muitas passagens sobre o amor-perfeito e a recepção que Deus deve fazer a seus eleitos no momento em que Ele próprio se tornará a sua grande e eterna recompensa. Repetia sem parar as palavras de amor que haviam abrasado o meu coração... Celina tornara-se a confidente íntima dos meus pensamentos; desde o Natal, podíamos compreender-nos, a distância de idade não existia mais, pois eu tornara-me grande em tamanho e, sobretudo, em graça... Antes dessa época, reclamava com frequência por não conhecer os segredos de Celina. Dizia-me que eu era pequena demais, que precisaria crescer a altura de um banquinho para ela ter confiança em mim... Gostava de subir nesse precioso banquinho quando estava ao lado dela, e lhe dizia para falar-me intimamente, mas meu esforço era inútil, uma distância nos separava ainda!...

Jesus queria fazer-nos avançar juntas e, por isso, formou em nossos corações laços ainda mais fortes que os do sangue. Tornou-nos irmãs de almas. Realizaram-se em nós essas palavras do Cântico de são João da Cruz (falando com o Esposo, a esposa exclama): "Seguindo vossas pegadas, as moças percorrem leves o caminho, o toque da centelha, o vinho condimentado fazem-nas produzir aspirações divinamente perfumadas". Sim, era com leveza que seguíamos as pegadas de Jesus, as centelhas do amor que semeava profusamente em nossas almas, o vinho delicioso e forte que nos dava de beber faziam desaparecer a nossos olhos as coisas passageiras e dos nossos lábios saíam aspirações de amor inspiradas por Ele. Como eram doces as conversações que tínhamos, toda noite, no mirante! O olhar fixo no horizonte, observávamos a branca lua içando-se atrás das altas árvores... os reflexos argênteos que se espalhavam sobre a natureza adormecida, as brilhantes estrelas cintilando no azul profundo... o sopro ligeiro da brisa nocturna fazia flutuar as nuvens nevadas, tudo elevava nossas almas para o Céu, o belo Céu do qual ainda só contemplávamos "o reverso límpido" ...

Não sei se estou enganada, mas parece-me que a efusão das nossas almas assemelhava-se à de santa Mónica com seu filho quando, no porto de Óstia, ficavam perdidos em êxtase à vista das maravilhas do Criador!... Creio que recebíamos graças de uma categoria tão alta como as concedidas aos grandes santos. Como diz a Imitação, às vezes Deus comunica-se em meio a um vivo esplendor, outras vezes "suavemente velado, por sombras e figuras. Era dessa última maneira que se dignava manifestar às nossas almas, mas como era transparente e leve o véu que separava Jesus dos nossos olhares!... A dádiva era impossível, já não havia necessidade da Fé e da Esperança, o amor fazia-nos encontrar na terra Aquele que buscávamos. "Tendo-o encontrado sozinho, dava-nos o seu beijo, a fim de que, no futuro, ninguém pudesse desprezar-nos."

Graças tão grandes não haviam de ficar sem frutos. E foram abundantes. A prática da virtude tornou-se para nós suave e natural; no começo, o meu rosto deixava transparecer a luta, mas aos poucos essa impressão desapareceu e a renúncia passou a ser fácil para mim, quase espontânea. Jesus disse: "A quem possui dar-se-á mais e ficará na abundância". Em troca de uma graça fielmente recebida, dava-me muitas outras... Ele próprio se dava a mim na santa Comunhão mais vezes que eu teria ousado esperar. Adoptei como regra de conduta comungar todas as vezes que fosse autorizada pelo meu confessor e deixar a este resolver o número das minhas comunhões, sem nunca interferir. Não tinha na época a audácia que tenho agora, pois teria agido de outro modo. Tenho certeza de que uma alma deve dizer claramente a seu confessor a atracção que tem para receber o seu Deus. Não é para ficar no cibório de ouro que Ele desce do céu todos os dias'", mas para encontrar um outro céu, infinitamente mais querido que o primeiro, o céu da nossa alma, feito à sua imagem, o templo vivo da adorável Trindade!...


Manuscrito "A" - Parte IV

Jesus, que via meu desejo e a rectidão do meu coração, permitiu que durante o mês de maio meu confessor me dissesse para comungar quatro vezes por semana e, findo esse belo mês, acrescentou mais um dia toda vez que houvesse uma festa. Doces lágrimas caíram dos meus olhos ao sair do confessionário, parecia-me que era o próprio Jesus quem queria dar-se a mim, pois eu ficava muito pouco tempo em confissão, nunca falava dos meus sentimentos interiores. O caminho pelo qual andava era tão recto, tão claro, que não precisava de outro guia que Jesus... Comparava os directores a espelhos fiéis que reflectiam Jesus nas almas e dizia que para mim Deus não usava intermediário, mas agia directamente!...

Quando um jardineiro cerca de cuidados uma fruta que quer fazer amadurecer prematuramente, nunca é para deixá-la na árvore, mas para apresentá-la numa mesa brilhantemente servida. Era com uma intenção semelhante que Jesus prodigalizava suas graças a sua florzinha... Ele que, nos dias da sua vida mortal, exclamava: "Pai, bendigo-vos por ter escondido essas coisas aos sábios e aos prudentes e tê-las revelado aos humildes", queria revelar em mim sua misericórdia, porque eu era pequena e fraca, inclinava-se para mim, instruía-me em segredo das coisas do seu amor. Ah! se sábios que passaram a vida estudando tivessem vindo interrogar-me, teriam, sem dúvida, ficado espantados ao ver uma criança de 14 anos compreender os segredos da perfeição, segredos que toda a ciência não pudera lhes revelar, pois para possuí-los é preciso ser pobre de espírito!...

Como diz são João da Cruz em seu cântico: "Não tinha guia nem luz, fora aquela que brilhava em meu coração, essa luz guiava-me com mais segurança que a do meio-dia para o lugar onde me aguardava Aquele que me conhece perfeitamente''. Esse lugar era o Carmelo. Antes de "descansar à sombra Daquele que eu desejava", devia passar por muitas provações, mas o chamamento divino era tão intenso que, mesmo que tivesse de atravessar as chamas, o teria feito para ser fiel a Jesus... Para encorajar-me em minha vocação, só encontrei uma alma, foi a da minha Madre querida... o meu coração encontrou no dela um eco fiel e, sem ela, não teria, sem dúvida, chegado à praia abençoada onde ela fora acolhida cinco anos antes sobre as margens impregnadas do orvalho celeste... Sim, havia cinco anos que estava afastada de vós, querida Madre, pensava vos ter perdido, mas no momento da provação foi a vossa mão que me indicou o caminho a seguir... Precisava desse alívio, pois minhas visitas ao Carmelo haviam-se tornado sempre mais penosas, não podia falar do meu desejo de ingresso sem sentir-me rejeitada. Achando-me jovem demais, Maria fazia tudo para impedir o meu ingresso; vós, Madre, para pôr-me à prova, procuráveis, algumas vezes, diminuir meu ardor; enfim, se eu não tivesse tido verdadeiramente a vocação, teria desistido logo no início, pois encontrei obstáculos logo que comecei a responder ao chamamento de Jesus. Não quis contar a Celina o meu desejo de entrar tão nova no Carmelo e isso fez-me sofrer mais, pois era-me muito difícil esconder dela alguma coisa... Esse sofrimento não durou muito tempo. Logo a minha irmãzinha querida soube da minha determinação e, longe de tentar desviar-me do projecto, aceitou com coragem admirável o sacrifício que Deus lhe pedia. Para compreender-lhe a amplitude, é preciso saber até que ponto éramos unidas... era, por assim dizer, a mesma alma que nos fazia viver; havia alguns meses que gozávamos juntas da mais doce vida que moças pudessem almejar; tudo a nosso redor respondia aos nossos gostos, usufruíamos da maior liberdade. Enfim, dizia que nossa vida era o Ideal da felicidade na terra... Apenas tínhamos tido tempo de gozar desse ideal de felicidade, e devíamos, livremente, desviar-nos dele. A minha Celina querida não se rebelou um instante. Como não era ela que Jesus chamava em primeiro lugar, podia ter reclamado... tendo a mesma vocação, era a vez de ela partir!... mas, como no tempo dos mártires, os que ficavam nas prisões davam alegremente o ósculo da paz a seus irmãos que partiam para combater na arena e consolavam-se pensando que, talvez, fossem reservados para lutas ainda maiores. Assim, Celina deixou a sua Teresa afastar-se e ficou sozinha para o glorioso e sangrento combate ao qual Jesus a destinava como a privilegiada do seu amor!...

Celina passou a ser a grande confidente das minhas lutas e dos meus sofrimentos. Tomou parte como se se tratasse da sua própria vocação. Não receava oposição por parte dela, mas não sabia que meios adoptar para informar a papai... Como dizer-lhe para deixar a sua rainha ir embora depois de ter sacrificado as três mais velhas?... Ah! quantas lutas íntimas sofri antes de sentir a coragem para lhe comunicar!... Precisava decidir-me, ia fazer 14 anos e meio, apenas seis meses nos separavam da bela noite de Natal em que resolvera ingressar, na mesma hora em que, no ano anterior, tinha recebido "minha graça". Escolhi o dia de Pentecostes para fazer a minha grande confidência e, o dia todo, supliquei aos santos Apóstolos que intercedessem por mim, que me inspirassem as palavras... Não eram eles, afinal, que deviam ajudar a criança tímida que Deus destinava a se tornar o apóstolo dos apóstolos pela oração e pelo sacrifício?... Foi de tarde, na volta das Vésperas, que encontrei a ocasião para falar com meu paizinho querido. Tinha ido sentar à beira da cisterna e ali, de mãos juntas, contemplava as maravilhas da natureza. O sol, cujo fogo tinha perdido o ardor, dourava a copa das altas árvores onde os passarinhos cantavam alegremente sua oração vesperal. A bela figura de papai tinha expressão celeste, sentia que a paz inundava seu coração. Sem dizer uma única palavra, fui sentar-me a seu lado, já com os olhos lacrimejantes, ele olhou-me com ternura e, pegando minha cabeça, encostou-a no seu peito dizendo: "Que tens, minha rainhazinha?... conte-me..." Levantando-se, como para dissimular a sua própria emoção, andou lentamente, segurando sempre a minha cabeça no seu peito. Em meio às minhas lágrimas, confidenciei o meu desejo de ingressar no Carmelo. Então, as lágrimas dele vieram misturar-se às minhas, mas não disse uma palavra para desviar-me da minha vocação, contentando-se apenas em observar que eu era ainda muito nova para tomar uma decisão tão séria. Defendi tão bem minha causa que, com sua natureza simples e recta, convenceu-se de que o meu desejo era o de Deus e, na sua fé profunda, exclamou que Deus lhe fazia uma grande honra pedindo-lhe assim suas filhas. Continuamos por longo tempo o nosso passeio. Aliviado pela bondade com a qual meu incomparável pai tinha acolhido as confidências, o meu coração expandia-se no dele. Papai parecia gozar dessa alegria tranquila nascida do sacrifício aceite. Falou-me como um santo e gostaria de lembrar-me das palavras dele a fim de escrevê-las aqui, mas conservei-as tão sublimadas que se tornaram intraduzíveis. O que recordo perfeitamente é da acção simbólica que meu rei querido cumpriu sem o perceber. Aproximando-se de um muro baixo, mostrou-me florzinhas brancas semelhantes a lírios em miniatura e, colhendo uma dessas flores, entregou-a a mim, explicando o cuidado com que Deus a fizera e a conservara até aquele momento; ouvindo-o falar, pensava ouvir a minha história, tal era a semelhança entre o que Jesus fizera a sua florzinha e a Teresinha... Recebi essa florzinha como uma relíquia e vi que, ao colhê-la, papai arrancara as raízes todas sem quebrar uma. Parecia destinada a viver ainda, numa outra terra, mais fértil que o tenro limo onde vivera suas primeiras manhãs... Era essa mesma acção que papai acabava de fazer para mim alguns instantes antes, permitindo-me subir a montanha do Carmelo e deixar o manso vale testemunho dos meus primeiros passos na vida.

(cont.)




Bento VXI – Pensamentos espirituais 23

A vida interior


Construir a vida, o futuro, requer também paciência e sofrimento. A Cruz também tem de fazer parte da vida dos jovens e não é fácil fazer entender isto. O montanhista sabe que, para fazer uma grande escalada, terá de treinar-se enfrentar sacrifícios. Do mesmo modo, o jovem tem de perceber que o exercício da vida interior é necessário para preparar a vida futura.


(Encontro com o clero da Diocese de Aóstia. (25.Jul.05)

(in “Bento XVI, Pensamentos Espirituais”, Lucerna 2006)