06/11/2014

Santo, sem oração?

Se não procuras a intimidade com Cristo na oração e no Pão, como podes dá-Lo a conhecer? (Caminho, 105)

Escreveste-me e compreendo-te: "Faço todos os dias o meu 'bocadinho' de oração. Se não fosse isso!...". (Caminho, 106)

Santo, sem oração?!... – Não acredito nessa santidade. (Caminho, 107)

Dir-te-ei, plagiando a frase de um autor estrangeiro, que a tua vida de apóstolo vale o que valer a tua oração. (Caminho, 108)

Desejo que o teu comportamento seja como o de Pedro e o de João: que leves à tua oração, para falar com Jesus, as necessidades dos teus amigos, dos teus colegas... e que depois, com o teu exemplo, possas dizer-lhes "Respice in nos!" – Olhai para mim! (Forja, 36)

O Evangelista S. Lucas conta que Jesus estava a orar... Como seria a oração de Jesus!

Contempla devagar esta realidade: os discípulos têm intimidade com Jesus e, nessas conversas, Nosso Senhor ensina-lhes – também com as obras – como hão-de rezar, e o grande portento da misericórdia divina: que somos filhos de Deus e que podemos dirigir-nos a Ele, como um filho fala com o Pai. (Forja, 71)

Ao acometer cada jornada para trabalhar junto de Cristo e atender tantas almas que o procuram, convence-te de que não há mais do que um caminho: recorrer a Nosso Senhor.


Somente na oração e com a oração aprendemos a servir os outros! (Forja, 72)

Temas para meditar - 263


Os outros

O Mestre convida-nos a ver os outros sem os preconceitos que forjamos com as próprias faltas e com a soberba, definitivamente, pela qual tendemos a aumentar as fraquezas alheias e a diminuir as próprias; o Senhor exorta-nos a «olhar os outros mais de dentro, com olhar novo (…), é necessário tirar a viga do nosso próprio olho. E o que é preciso é renovar a nossa forma de contemplar os outros.

(a. mª. dorronsoroDios y la gente, Rialp, Madrid 1974, p. 134-135, trad ama)

Tratado do verbo encarnado 21

Questão 3: Da união relativamente à pessoa que assumiu

Art. 4 — Se uma Pessoa pode assumir a natureza criada, sem a assumir outra.

O quarto discute-se assim. — Parece que uma Pessoa não pode assumir a natureza, sem a assumir outra.

1. — Pois, as obras da Trindade são indivisas, como diz Agostinho. Ora, como a essência das três Pessoas é só uma, assim também uma só a operação. Ora, assumir é uma determinada operação. Logo, não pode convir a uma Pessoa divina sem que o convenha a outra.

2. Demais. — Assim como falamos da pessoa incarnada do Filho, assim, da natureza: pois, toda a natureza divina se encarnou numa das suas hipóstases, como diz Damasceno. Ora, a natureza é comum às três Pessoas. Logo, também a assunção.

3. Demais. — Assim como a natureza humana em Cristo foi assumida por Deus, assim também pela graça, os homens são assumidos por ele, segundo o Apóstolo: Deus o recebeu por seu. Ora, esta assunção pertence comumente a todas as Pessoas. Logo, também a primeira.

Mas, em contrário, Dionísio diz que o mistério da Encarnação pertence à teologia descritiva, pela qual se introduz a distinção das Pessoas divinas.

Como dissemos, a assunção implica duas coisas: o acto de quem assume e o termo da assunção. Ora, o acto de quem assume procede da virtude divina, comum às três Pessoas, mas o termo da assunção é a pessoa, como se disse. Logo, o que implica uma acção, na assunção, é comum às três Pessoas, mas o que implica a ideia de termo convém de modo a uma Pessoa, que não convém às outras. Pois, as três Pessoas fizeram com que a natureza humana se unisse à Pessoa do Filho.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — A objecção colhe quanto à operação. E a conclusão seria consequente se importasse só essa operação sem o termo, que é a Pessoa.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Dizemos que a natureza se encarnou e que assumiu, em razão da Pessoa na qual se terminou a união, como se disse, não porém enquanto comum às três Pessoas, Pois dizemos que toda a natureza divina se encarnou, não por se ter encarnado em todas as Pessoas, mas por não faltar nenhuma das perfeições divinas à natureza da Pessoa encarnada.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A assunção feita pela graça da adopção termina numa determinada participação da natureza divina, por assimilação com a bondade dela, conforme a Escritura. Para que sejais feitos participantes, etc. E essa assunção é comum às três Pessoas, tanto quanto ao princípio, como ao termo. Mas, a assunção feita pela graça da união é comum quanto ao princípio, mas não quanto ao termo, como se disse.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


Evangelho diário, coment. Leit esp. (História de uma alma)

Tempo comum XXXI Semana

São Nuno de Santa Maria

Evangelho: Lc 15 1-10

1 Aproximavam-se d'Ele os publicanos e os pecadores para O ouvir. 2 Os fariseus e os escribas murmuravam, dizendo: «Este recebe os pecadores e come com eles». 3 Então propôs-lhes esta parábola: 4 «Qual de vós, tendo cem ovelhas, se perde uma delas, não deixa as noventa e nove no deserto, para ir procurar a que se tinha perdido, até que a encontre?  5 E, tendo-a encontrado, a põe sobre os ombros todo contente 6 e, indo para casa, chama os seus amigos e vizinhos, dizendo-lhes: Alegrai-vos comigo, porque encontrei a minha ovelha que se tinha perdido. 7 Digo-vos que, do mesmo modo, haverá maior alegria no céu por um pecador que fizer penitência que por noventa e nove justos que não têm necessidade de penitência». 8 «Ou qual é a mulher que, tendo dez dracmas, e perdendo uma, não acende a candeia, não varre a casa, e não procura diligentemente até que a encontre? 9 E que, depois de a achar, não convoca as amigas e vizinhas, dizendo: Alegrai-vos comigo, porque encontrei a dracma que tinha perdido. 10 Assim vos digo Eu que haverá alegria entre os anjos de Deus por um só pecador que faça penitência».

Comentário

Haverá maior alegria que ser perdoado?
E… qual a dimensão dessa alegria quando o perdão nos vem directamente do ofendido?
E… quando o Ofendido é o próprio Senhor?

(ama, comentário sobre Lc 15, 1-10, V. Moura, 2013.09.15)

Leitura espiritual



HISTÓRIA DE UMA ALMA

Santa Teresinha do Menino Jesus


Manuscrito "A" - Parte IV

…/3

Em Veneza, o cenário muda completamente. Em vez do ruído das grandes cidades, só se ouvem, no meio do silêncio, os gritos dos gondoleiros e o murmúrio da onda agitada pelos remos. Veneza não é desprovida de encantos, mas acho essa cidade triste. O palácio dos doges é esplêndido, porém também triste com os seus vastos aposentos onde reinam o ouro, a madeira, os mais preciosos mármores e as pinturas dos maiores mestres. Há muito tempo que suas abóbadas sonoras deixaram de ouvir as vozes dos governadores que pronunciavam sentenças de vida e de morte nas salas que atravessamos... Os infelizes prisioneiros que mantinham nas masmorras e calabouços subterrâneos deixaram de sofrer... Ao visitar esses horrendos cárceres, reportava-me ao tempo dos mártires e desejei poder ficar, a fim de imitá-los!... Mas foi preciso sair logo e passar na ponte dos suspiros, assim chamada por causa dos suspiros de alívio dados pelos condenados por se verem livres do horror dos subterrâneos, aos quais preferiam a morte... Depois de Veneza, fomos a Pádua, onde veneramos a língua de santo António, e a Bolonha, onde vimos santa Catarina, que conserva a impressão do beijo do Menino Jesus. Há muitos pormenores interessantes que eu poderia dar sobre cada cidade e sobre as mil pequenas circunstâncias particulares da nossa viagem, mas não teria fim, por isso só vou relatar os principais.

Deixei Bolonha com satisfação. Essa cidade tornara-se insuportável para mim, devido aos estudantes dos quais está repleta e que formavam uma barreira quando tínhamos a infelicidade de sair a pé, e, sobretudo, por causa de pequena aventura que me aconteceu com um deles. Foi com alegria que rumei para Loreto. Não me surpreendeu que Nossa Senhora tenha escolhido esse lugar para transportar sua casa abençoada. A paz, a alegria, a pobreza reinam soberanamente; tudo é simples e primitivo, as mulheres conservaram o gracioso traje italiano e não adoptaram, como em outras cidades, a moda parisiense. Enfim, Loreto encantou-me! Que direi da casa abençoada?... Ah! minha emoção foi profunda ao ver-me sob o mesmo tecto que a Sagrada Família, a contemplar os muros nos quais Jesus fixara seus divinos olhos, pisando a terra que são José molhou com seus suores, onde Maria carregara Jesus em seus braços depois de tê-lo carregado no seu seio virginal... Vi o quartinho onde o anjo desceu para perto da Santíssima Virgem... Coloquei o meu terço na tigelinha do Menino Jesus... Como essas recordações são maravilhosas!...

O nosso maior consolo foi receber Jesus em sua própria casa e ser o seu templo vivo no lugar que Ele honrou com sua presença. Segundo um costume da Itália, o santo cibório só se conserva, em cada igreja, sobre um altar, e somente aí se pode receber a santa comunhão. Esse altar encontra-se na própria basílica onde está a casa abençoada, guardada como um diamante precioso num estojo de mármore branco. Isso não nos agradou, pois queríamos comungar no próprio diamante, não no estojo... Com a sua cordialidade habitual, papai fez como todos os outros, mas Celina e eu fomos encontrar um sacerdote que nos acompanhava em todo lugar e que, naquele momento e por um privilégio especial, se preparava para celebrar missa na casa abençoada. Pediu duas pequenas hóstias que colocou na patena junto à grande e compreendeis, Madre querida, com que êxtase comungamos, as duas, nessa casa abençoada!... Era uma felicidade toda celeste que as palavras não podem expressar. Como será então quando recebermos a santa comunhão na eterna morada do Rei dos Céus?... Não mais veremos terminar a nossa felicidade, não haverá mais a tristeza da partida e, para levar uma lembrança, não será mais necessário raspar furtivamente as paredes santificadas pela presença divina, sendo que a casa dele será nossa para a eternidade... Não quer dar-nos a da terra, contenta-se em mostrá-la a nós para nos fazer amar a pobreza e a vida oculta. A morada que Ele nos reserva é o seu palácio de glória onde não mais o veremos oculto, sob a aparência de uma criança ou de uma hóstia branca, mas tal como é, no seu esplendor infinito!!!...

É de Roma, agora, que me resta falar, Roma, meta da nossa viagem, lá onde acreditava encontrar o consolo, mas onde encontrei a cruz!... À nossa chegada, era noite e dormíamos. Fomos acordados pelos funcionários da estação que gritavam: "Roma, Roma". Não era um sonho, estava em Roma!...

O primeiro dia passou-se fora dos muros e foi, talvez, o mais agradável, pois todos os monumentos conservaram a sua marca de antiguidade, enquanto no centro poder-se-ia acreditar estar em Paris ao ver a magnificência dos hotéis e das lojas. Esse passeio na campanha romana deixou em mim uma doce recordação. Não falarei dos lugares que visitamos, são muitos os livros que os descrevem nos pormenores, falarei apenas das principais impressões que tive. Uma das mais agradáveis foi a que me fez estremecer à vista do Coliseu. Estava vendo, enfim, essa arena onde tantos mártires tinham derramado o sangue por Jesus. Já ia apressar-me a beijar a terra que santificaram, mas que decepção! O centro não passa de um montão de entulho que os romeiros têm de se contentar em olhar, pois uma barreira impede a entrada. Aliás, ninguém fica interessado em penetrar naquelas ruínas... Seria possível ir a Roma sem visitar o Coliseu?... Não queria admitir, não escutava mais as explicações do guia, só um pensamento me atormentava: descer à arena... Vendo um operário que passava com uma escada, estive prestes a pedir-lhe, felizmente não pus meu plano em execução, porque me teriam considerado louca... Diz-se no Evangelho que Madalena tinha ficado junto ao sepulcro e que, inclinando-se por diversas vezes para ver dentro, acabou vendo dois anjos. Como ela, depois de constatar a impossibilidade de realizar meus desejos, continuei inclinando-me sobre as ruínas onde queria descer; no fim, não vi anjo nenhum, mas sim o que eu procurava. Soltei um grito de alegria e disse a Celina: "Venha depressa, vamos poder passar!..." Logo atravessamos a barreira de entulhos e eis-nos escalando as ruínas que caíam sob nossos passos.

Papai olhava-nos espantado com a nossa audácia. Logo nos disse para voltar, mas as duas fugitivas não ouviam mais nada. Assim como os guerreiros sentem a coragem aumentar no meio do perigo, a nossa alegria crescia na proporção da dificuldade que tínhamos para alcançar o objecto dos nossos desejos. Mais precavida que eu, Celina tinha escutado o guia e lembrou-se de que falara de uma certa lajinha cruzada como sendo o lugar onde combatiam os mártires e pôs-se a procurá-la. Achou-a e, ao ajoelharmos sobre essa terra sagrada, nossas almas confundiram-se numa mesma oração... Meu coração batia fortemente quando meus lábios se aproximaram do pó tingido do sangue dos primeiros cristãos. Pedi a eles a graça de ser também mártir para Jesus e senti no fundo do meu coração que minha oração seria atendida!... Tudo isso foi feito em muito pouco tempo. Depois de pegar algumas pedras, voltamos em direcção aos muros em ruína a fim de refazer em sentido inverso a nossa perigosa trajectória. Vendo-nos tão felizes, papai não pôde chamar a nossa atenção e vi que estava feliz pela nossa coragem... Deus protegeu-nos visivelmente, pois os romeiros não tomaram conhecimento da nossa escapada, estando afastados de nós, ocupados a olhar as magníficas arcadas onde o guia fazia observar "as pequenas cornijas e os cupidos fixados em cima". Portanto, nem ele nem "os senhores padres" conheceram a alegria que enchia nossos corações...

As catacumbas deixaram também em mim uma suave impressão: são exactamente como eu as imaginava ao ler a sua descrição na vida dos mártires. Depois de ter passado parte da tarde ali, parecia-me ter entrado poucos minutos antes, tão perfumada me parecia a atmosfera que se respira... Era preciso levar algumas recordações das catacumbas. Deixando a procissão afastar-se um pouco, Celina e Teresa penetraram juntas até o fundo do antigo túmulo de santa Cecília e pegaram terra santificada pela sua presença. Antes da minha viagem a Roma, eu não tinha por essa santa devoção especial, mas ao visitar sua casa transformada em igreja, o lugar do seu martírio, informada que fora proclamada rainha da Harmonia, não por causa da sua bela voz nem do seu talento musical, mas em memória do canto virginal que fez ouvir a seu Esposo Celeste escondido no fundo do seu coração, senti por ela mais do que devoção: uma verdadeira ternura de amiga... Passou a ser a minha santa predileta, minha confidente íntima... Tudo nela me extasia, sobretudo oseu desprendimento, a sua confiança ilimitada que a tornou capaz de virginizar almas que nunca desejaram outras alegrias que as da vida presente...

Santa Cecília é parecida com a esposa dos cânticos. Nela vejo "um coro num campo de exército...". A sua vida não foi senão um canto melodioso no meio às maiores provações, e isso não me é estranho, sendo que "o Evangelho sagrado repousava sobre seu coração!" e que em seu coração repousava o Esposo das Virgens!...

A visita à igreja Santa Inês foi também muito doce para mim. Era uma amiga de infância que ia visitar na própria casa. Falei-lhe muito tempo de quem leva tão bem o nome e fiz tudo o que pude para obter uma relíquia da angélica padroeira da minha Madre querida a fim de lhe trazer, mas foi-nos possível conseguir apenas uma pedrinha vermelha que se desprendeu de um rico mosaico cuja origem remonta ao tempo de santa Inês e que ela deve ter olhado muitas vezes. Não era delicado por parte da santa dar-nos, ela própria, o que procurávamos e que nos era proibido pegar?... Sempre considerei o facto como uma delicadeza e uma prova do amor com que a doce santa Inês olha e protege minha querida Madre!...

Seis dias se foram em visitas às principais maravilhas de Roma e, no sétimo, vi a maior de todas: "Leão XIII..." Desejava e temia esse dia, dele dependia minha vocação, pois a resposta que eu devia receber de Sua Excelência não tinha chegado e soubera por uma carta vossas, Madre, que ele não estava mais muito bem-disposto a meu favor. Portanto, minha única tábua de salvação era o Santo Padre... Mas para obter a permissão era preciso pedi-la, era preciso, na frente de todos, ousar falar "ao Papa". Essa ideia fazia-me tremer. Como sofri antes da audiência, só Deus e minha querida Celina o sabem. Nunca me esquecerei da parte que ela tomou em minhas provações. Minha vocação parecia ser dela. (Nosso amor mútuo era notado pelos padres da romaria: uma noite, numa reunião tão numerosa que faltavam lugares, Celina fez-me sentar no seu colo e olhávamo-nos tão gentilmente que um padre exclamou: "Como se amam, ah! nunca essas duas irmãs poderão separar-se!" Sim, amávamo-nos, mas nosso afecto era tão puro e tão forte que a ideia da separação não nos perturbava, pois sentíamos que nada, nem o oceano, poderia afastar uma da outra... Celina via com calma o meu barquinho acostar à margem do Carmelo; resignava-se a ficar o tempo que Deus quisesse no mar turbulento do mundo, certa de chegar um dia à margem desejada...)

Domingo, 20 de Novembro, depois de nos vestirmos segundo o cerimonial do Vaticano (isto é, de preto, com uma mantilha de renda na cabeça), e ter-nos enfeitado com uma grande medalha de Leão XIII amarrada com fita azul e branca, fizemos a nossa entrada no Vaticano, na capela do Soberano Pontífice. Às 8 horas, a nossa emoção foi profunda ao vê-lo entrar, para celebrar a santa Missa... Depois de dar a bênção aos numerosos romeiros reunidos ao seu redor, subiu os degraus do santo altar e mostrou-nos, pela sua piedade digna do Vigário de Jesus, que era verdadeiramente "O Santo Padre". O meu coração batia muito forte e as minhas orações eram muito fervorosas, quando Jesus descia nas mãos do seu Pontífice, e eu estava muito confiante. O Evangelho desse dia continha essas palavras animadoras: "Não tenhais receio, pequeno rebanho, porque foi do agrado de vosso Pai dar-vos o seu reino". Eu não receava, esperava que o reino do Carmelo fosse meu em breve. Não pensava então nessas outras palavras de Jesus: "Preparo para vós, como o Pai preparou para ruim, um reino". Isto é, reservo para vós cruzes e provações; assim é que sereis dignos de possuir esse reino pelo qual ansiais. Por ter sido necessário o Cristo sofrer para entrar na sua glória, se desejais ter lugar ao lado Dele, bebei do cálice que Ele bebeu!... Esse cálice foi-me apresentado pelo Santo Padre e minhas lágrimas misturaram-se à bebida que me era oferecida. Depois da missa de acção de graças que se seguiu à de Sua Santidade, a audiência começou. Leão XIII estava sentado numa grande poltrona, vestido simplesmente da batina branca, camilha da mesma cor e solidéu. Ao redor dele estavam cardeais, arcebispos, bispos, mas só os vi vagamente, estando ocupada com o Santo Padre. Desfilávamos diante dele, cada romeiro se ajoelhava, beijava o pé e a mão de Leão XIII, recebia sua bênção e dois guardas tocavam-o para indicar-lhe que se levantasse (o romeiro, pois explico-me tão mal que se poderia pensar que fosse o Papa). Antes de subir ao apartamento pontifício, eu estava muito resolvida a falar, mas senti minha coragem falhar vendo à direita do Santo Padre "o padre Révérony!..." Quase no mesmo instante, disseram-nos, da parte dele, que proibia falar com Leão XIII, pois a audiência estava-se prolongando demais... Virei-me para minha querida Celina a fim de consultá-la: "Fala", disse-me ela. Um instante depois, eu estava aos pés do Santo Padre. Tendo eu beijado a sua sandália, ele apresentou-me a mão. Em vez de beijá-la, pus as minhas e, levantando para o rosto dele meus olhos banhados em lágrimas, exclamei: "Santíssimo Padre, tenho um grande favor para pedir-vos!..." Então, o Soberano Pontífice" inclinou a cabeça de maneira que meu rosto quase encostou no dele e vi seus olhos pretos e profundos fixarem-se sobre mim e parecer penetrar-me até o fundo da alma. "Santíssimo Padre", disse, "em honra do vosso jubileu, permiti que eu entre no Carmelo aos 15 anos!..."

Manuscrito "A" - Parte V

Sem dúvida, a emoção fez tremer a minha voz e, virando-se para o padre Révérony, que me olhava surpreso e descontente, o Santo Padre disse: "Não compreendo muito bem". Se Deus tivesse permitido, teria sido fácil para o padre Révérony obter para mim o que eu desejava, mas era a cruz e não a consolação que Ele queria dar-me. "Santíssimo Padre", respondeu o vigário-geral, "é uma criança que deseja ingressar no Carmelo aos 15 anos, mas os superiores examinam a questão neste momento." "Então, minha filha", respondeu o Santo Padre, olhando-me com bondade, "fazei o que os superiores vos disserem." Apoiando minhas mãos sobre seus joelhos tentei um último esforço e disse com voz suplicante: "Oh! Santíssimo Padre, se dissésseis sim, todos estariam a favor!..." Ele olhou-me fixamente e pronunciou as seguintes palavras, destacando cada sílaba: "Vamos... Vamos... Entrareis se Deus quiser..." A sua acentuação tinha alguma coisa de tão penetrante e de tão convincente que tenho impressão de ouvi-lo ainda. A bondade do Santo Padre animava-me e eu queria falar mais, mas os dois guardas tocaram-me polidamente para fazer-me levantar. Vendo que isso não era suficiente, seguraram-me pelos braços e o padre Révérony ajudou-os a levantar-me, pois ainda estava com as mãos juntas, apoiadas nos joelhos de Leão XIII, e foi pela força que me arrancaram dos seus pés... No momento em que estava sendo retirada, o Santo Padre colocou a sua mão nos meus lábios e levantou-a para me benzer. Então, os meus olhos encheram-se de lágrimas e o padre Révérony pôde contemplar, pelo menos, tantos diamantes como tinha visto em Bayeux... Os dois guardas carregaram-me, pode dizer-se, até a porta e um terceiro me deu uma medalha de Leão XIII. Celina, que me seguia e havia sido testemunha da cena que acabava de acontecer, quase tão emocionada quanto eu, ainda teve a coragem de pedir ao Santo Padre uma bênção para o Carmelo. O padre Révérony, com voz descontente, respondeu: "O Carmelo já foi abençoado". O bondoso Santo Padre confirmou com doçura: "Oh, sim! já foi abençoado". Antes de nós, papai viera aos pés de Leão XIII, com os homens. O padre Révérony foi gentil com ele, apresentando-o como pai de duas carmelitas. Como sinal de benevolência, o Soberano Pontífice pôs a mão sobre a cabeça venerável do meu Rei querido, parecendo marcá-la com um selo misterioso, em nome Daquele de quem é o verdadeiro representante... Ah! agora que esse Pai de quatro carmelitas está no Céu, não é mais a mão do pontífice que repousa sobre sua fronte, profetizando-lhe o martírio... É a mão do Esposo das Virgens, do Rei de Glória, que faz resplandecer a cabeça de seu Fiel Servo. E, mais do que nunca, essa mão adorada não deixará de repousar na fronte que tem glorificado...

Meu papai querido ficou muito triste ao encontrar-me chorando à saída da audiência, fez tudo o que pôde para me consolar. Mas foi inútil... No fundo do coração, sentia grande paz, pois tinha feito tudo o que me era possível fazer para responder ao que Deus queria de mim; mas essa paz estava no fundo e a amargura enchia minha alma, pois Jesus ficava calado. Parecia-me ausente, nada revelava a presença Dele... Ainda naquele dia, o sol não brilhou e o belo céu azul da Itália, carregado de nuvens escuras, não parou de chorar comigo... Ah! para mim, a viagem tinha acabado. Não comportava mais encantos, pois a finalidade não fora alcançada. Todavia, as últimas palavras do Santo Padre deveriam ter-me consolado: não eram, de facto, verdadeira profecia? Apesar de todos os obstáculos, o que Deus quis cumpriu-se. Não permitiu que as criaturas fizessem o que queriam, mas a vontade Dele... Havia algum tempo oferecera-me ao Menino Jesus para ser seu brinquedinho. Tinha-lhe dito para não me usar como brinquedo caro que as crianças só podem olhar sem ousar tocar, mas como uma bola sem valor que podia jogar no chão, dar pontapés, furar, largar num cantinho ou apertar contra o seu coração conforme achasse melhor; numa palavra, queria divertir o Menino Jesus, agradar-lhe, queria entregar-me a suas manhas de criança... Ele aceitou minha oferta...

Em Roma, Jesus furou seu brinquedinho. Queria ver o que havia dentro e, depois de ver, contente com sua descoberta, deixou cair sua pequena bola e adormeceu... Que fez durante o sono e que foi feito da bola deixada de lado?... Jesus sonhou que continuava brincando com sua bola, deixando-a e retomando-a, e que, depois de deixá-la rolar muito longe, a apertou no seu coração, não permitindo mais que se afastasse de sua mãozinha...

Compreendeis, querida Madre, quanto a pequena bola ficou triste ao ver-se largada... Mas eu não deixava de esperar contra toda a esperança. Alguns dias após a audiência com o Santo Padre, papai foi visitar o bom irmão Simião e lá encontrou o padre Révérony, que se mostrou muito amável. Papai censurou-o, brincando, por não me ter ajudado no meu difícil empreendimento e contou a história da sua Rainha ao irmão Simião. O venerável ancião escutou o relato com muito interesse, tomou notas até, e disse com emoção: "Isso não se vê na Itália!" Creio que essa entrevista causou muito boa impressão no padre Révérony. A partir dela, não deixou mais de me provar estar finalmente convicto da minha vocação.

No dia seguinte ao dia memorável, tivemos de partir cedo para Nápoles e Pompeia. Em nossa honra, o Vesúvio fez-se barulhento o dia todo, trovejando e deixando escapar uma coluna de grossa fumaça. Os vestígios que deixou sobre as ruínas de Pompeia são apavorantes, mostram o poder de Deus: "Ele que com um olhar faz tremer a terra, e a seu toque os montes fumegam..." Teria gostado de andar sozinha no meio das ruínas, sonhar com a fragilidade das coisas humanas, mas o número de visitantes tirava grande parte do encanto melancólico da cidade destruída... Em Nápoles, foi o contrário. O grande número de carros de dois cavalos tornou magnífico nosso passeio ao mosteiro San Martino, situado numa alta colina que domina a cidade. Infelizmente, os cavalos que nos levavam tomavam o freio nos dentes e, mais de uma vez, pensei ver chegar minha última hora. Embora o cocheiro repetisse constantemente a palavra mágica dos condutores italianos: "Appipau, appipau...", os cavalos queriam derrubar o carro. Enfim, graças à ajuda dos nossos anjos da guarda, chegamos ao nosso hotel. Durante toda a viagem fomos alojadas em hotéis principescos, nunca tinha estado cercada de tanto luxo; vem ao caso dizer que a riqueza não traz a felicidade. Pois teria sido mais feliz numa choupana, com a esperança do Carmelo, do que no meio de lambris dourados, escadas de mármore branco, tapetes de seda, e com amargura no coração... Ah! senti-o muito bem: a felicidade não está nos objectos que nos cercam, está no mais íntimo da alma. Pode ser gozada tanto numa prisão como num palácio; a prova é que sou mais feliz no Carmelo, mesmo no meio de provações interiores e exteriores, do que no mundo, cercada pelas comodidades da vida e, sobretudo, pelas doçuras do lar paterno!...

(cont.)




Reflectindo 45


Inferno

O Inferno existe, é uma verdade de fé. Várias descrições têm sido feitas ao longo dos tempos – talvez a mais recente a da Beata Jacinta Marto – sobre visões do Inferno. A imaginação pode levar-nos onde quisermos mas, a verdade, é que o supremo castigo e maior suplício ou pena será a privação de ver a Deus face a face.


(AMA, comentários sobre os Novíssimos - Inferno, 2010.10.18)