30/11/2014

Tratado do verbo encarnado 45

Questão 6: Da ordem da assunção

Art. 4 — Se a carne de Cristo foi primeiro assumida pelo Verbo que unida à alma.

O quarto discute-se assim. — Parece que a carne de Cristo foi primeiro assumida pelo Verbo que unida à alma.

1. — Pois, diz Agostinho: Crê firmissimamente e de nenhum modo duvides, que a carne de Cristo não foi concebida, sem a divindade, no ventre da Virgem, antes que fosse assumida pelo Verbo. Ora, parece que a carne de Cristo foi primeiro concebida que unida à alma racional, porque a disposição material é anterior na via da geração que a forma completiva. Logo, primeiro foi a carne de Cristo assumida que unida à alma.

2. Demais. — Assim como a alma faz parte da natureza humana, assim também o corpo. Ora, a alma humana não teve outro princípio do seu ser em Cristo, que nos outros homens, como resulta da autoridade de Leão Papa supra aduzida. Logo, parece que também, o corpo de Cristo não teve outro princípio de existir diferente do que tem em nós. Ora, em nós é concebido o corpo antes que se lhe una a alma racional. Logo, assim também o foi em Cristo. Então, a carne foi primeiro assumida pelo Verbo, que unida à alma.

3. Demais. — Diz um autor que a causa primeira mais influi no causado e mais lhe está unida, que a causa segunda. Ora, a alma de Cristo está para o Verbo como a causa segunda para a primeira. Portanto, primeiro o Verbo uniu-se à carne, que a alma.

Mas, em contrário, diz Damasceno: A carne do Verbo de Deus é simultaneamente carne, carne animada, racional e intelectual. Logo, a união do Verbo com a carne não lhe precedeu a união com a alma.

A carne humana pode ser assumida pelo Verbo, conforme a relação que tem com a alma racional como com a sua forma própria. Ora, essa relação não existe antes de se lhe unir a alma racional. Pois, quando uma certa matéria se torna própria de uma determinada forma, simultaneamente recebe essa forma donde não se termina a alteração no mesmo instante em que é introduzida a forma substancial. Por isso a carne não devia ser assumida antes de ser carne humana o que se deu quando se lhe uniu a alma racional. Assim como, pois, a alma não foi primeiro assumida, que a carne, por ser contra a natureza da alma o existir antes de unida ao corpo assim também a carne não devia primeiro ser assumida, que a alma, por não ser carne humana antes de ter uma alma racional.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — A carne humana existe por meio da alma. Logo, antes da união com a alma, não é carne humana mas, pode ser uma disposição para a carne humana. Mas, na concepção de Cristo, o Espírito Santo que é um agente de virtude infinita, simultaneamente dispôs a matéria e a conduziu ao seu termo perfeito.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A forma específica actualizando a matéria é essencialmente potencial em relação à espécie. Donde, seria contra a essência da forma o preexistir à natureza da espécie, cuja perfeição se consuma pela sua união com a matéria mas não é contra a natureza da matéria o preexistir à natureza da espécie. Donde, a dissemelhança entre a nossa origem e a de Cristo, consistente em ser a nossa carne concebida antes de ser animada, e em o não ser a carne de Cristo, funda-se no que precede o complemento da natureza assim como também a diferença de sermos nós concebidos do sémen do homem, mas não Cristo. Mas, a diferença que houvesse quanto à origem da alma redundaria em diversidade de natureza.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Entende-se que o Verbo de Deus primeiro se uniu à carne que à alma, pelo modo comum das outras criaturas — pela essência, pela potência e pela presença digo porém — primeiro — não temporalmente, mas segundo a natureza. Pois, primeiro inteligimos a carne como um certo ser que tem do Verbo, do que como animada, o que lhe advém da alma. Mas, pela união pessoal é mister que primeiro segundo o intelecto, a carne se una à alma que ao Verbo porque a união com a alma a torna capaz de união com o Verbo em pessoa: sobretudo porque a pessoa só existe na natureza racional.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


Tratado do verbo encarnado 45

Questão 7: Da graça de Cristo como um homem particular

Art. 4 — Se em Cristo existia a esperança.

O quarto discute-se assim. — Parece que em Cristo existia a esperança.

1. — Pois, diz a Escritura, da pessoa de Cristo, segundo a Glosa: Em ti, Senhor, esperei. Ora, a virtude da esperança é a pela qual esperamos em Deus. Logo, Cristo teve a virtude da esperança.

2. Demais. — A esperança é a expectação da beatitude futura, como demonstramos na Segunda Parte. Ora, Cristo esperava algo de pertinente à beatitude, a saber, a glória do corpo. Logo, parece que nele houve a esperança.

3. Demais. — Cada qual pode esperar o que lhe condisser com a perfeição, se for futuro. Ora, havia algo de futuro, pertinente à perfeição de Cristo, segundo o Apóstolo: Para a consumação dos santos em ordem à obra do ministério, para edificar o corpo de Cristo. Logo, parece que cabia a Cristo ter esperança.

Mas, em contrário, o Apóstolo: O que qualquer vê como o espera? Donde é claro que, como a fé tem por objecto o que não vemos, assim, também a esperança. Ora, não havia fé em Cristo, como se disse. Logo, nem esperança.

Assim como é da essência da fé o assentirmos no que não vemos, assim, é da essência da esperança termos a expectação do que ainda não possuímos. E assim como a fé, enquanto virtude teologal, não tem por objecto qualquer ser não visto, mas só Deus, assim também a esperança, enquanto virtude teologal tem por objecto a própria fruição de Deus, o que principalmente temos em vista pela virtude da esperança. Mas, por consequência, quem possui a virtude da esperança pode também esperar o auxílio divino em outras matérias, assim como quem tem a virtude da fé não somente crê em Deus, em se tratando das coisas divinas, mas de tudo o mais que lhe tenha sido divinamente revelado. Ora, Cristo, desde o momento da sua concepção, teve a plena fruição divina, como a seguir demonstraremos. E portanto, não teve a virtude da esperança. Mas tinha a esperança relativamente a algumas coisas que ainda não havia alcançado, embora não tivesse a fé relativamente a quaisquer coisas. Pois, embora conhecesse todas as coisas, o que dele totalmente excluía a fé, contudo, ainda não tinha plenamente tudo o que pertencia à sua perfeição, por exemplo a imortalidade e a glória do corpo, que podia esperar.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. — O lugar aduzido não se aplica a Cristo, quanto à esperança, como virtude teologal, mas porque esperava algumas coisas que ainda não tinha, como se disse.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A glória do corpo não pertence à beatitude em que ela principalmente consiste, mas, por uma certa redundância da glória da alma, como se disse na Segunda Parte. Donde, a esperança, enquanto virtude teologal, não respeita à beatitude do corpo, mas à da alma, que consiste na fruição divina.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A edificação da Igreja, pela conversão dos fiéis, não pertence à perfeição de Cristo, enquanto perfeito em si mesmo, mas enquanto leva os outros a participar da sua perfeição. E como a esperança propriamente é dita em relação aquilo que quem espera está na expectativa de possuir, não se pode propriamente dizer que a virtude da esperança conviesse a Cristo, pela razão aduzida.

Nota: Revisão da versão portuguesa por ama.


Dois mil anos de espera do Senhor

Jesus ficou na Hóstia Santa por nós! Para permanecer ao nosso lado, para nos sustentar, para nos guiar. – E amor só se paga com amor. Como poderemos deixar de ir ao Sacrário, todos os dias, ainda que por uns minutos apenas, para Lhe levar a nossa saudação e o nosso amor de filhos e de irmãos? (Sulco, 686)

O nosso Deus decidiu ficar no Sacrário para nos alimentar, para nos fortalecer, para nos divinizar, para dar eficácia ao nosso trabalho e ao nosso esforço. Jesus é simultaneamente o semeador, a semente e o fruto da sementeira: o Pão da vida eterna.

(...) Assim espera o nosso amor, desde há quase dois mil anos. É muito tempo e não é muito tempo; porque, quando há amor, os dias voam.

Vem-me à memória uma encantadora poesia galega, uma das cantigas de Afonso X, o Sábio. É a lenda de um monge que, na sua simplicidade, suplicou a Santa Maria que o deixasse contemplar o céu, ainda que fosse só por um instante. A Virgem acolheu o seu desejo, e o bom monge foi levado ao Paraíso. Quando regressou, não reconhecia nenhum dos moradores do mosteiro: a sua oração, que lhe tinha parecido brevíssima, tinha durado três séculos. Três séculos não são nada, para um coração que ama. Assim compreendo eu esses dois mil anos de espera do Senhor na Eucaristia. É a espera de Deus, que ama os homens, que nos procura, que nos quer tal como somos – limitados, egoístas, inconstantes – mas com capacidade para descobrirmos o seu carinho infinito e para nos entregarmos inteiramente a Ele. (Cristo que passa, 151)


Ev. coment. L. esp. (Cristo que passa)

Advento I Semana

Santo André - Apóstolo

Evangelho: Mc 13 33-37

33 Estai de sobreaviso, vigiai, porque não sabeis quando será o momento.34 Será como um homem que, empreendendo uma viagem, deixou a sua casa, delegou a autoridade aos seus servos, indicando a cada um a sua tarefa, e ordenou ao porteiro que estivesse vigilante.35 Vigiai, pois, visto que não sabeis quando virá o senhor da casa, se de tarde, se à meia-noite, se ao cantar do galo, se pela manhã;36 para que, vindo de repente, não vos encontre a dormir.37 O que vos digo a vós, digo-o a todos: Vigiai!»

Comentário

O grande tema do mês de Novembro: A vigilância, a preparação para o momento derradeiro da vida terrena.
Não há como fugir ou adiar, acontecerá quando o Senhor da vida e da morte assim determinar.
A nós compete-nos estar preparados e não há outra forma de o fazer senão levar com denodada atenção a vida que o Senhor quer que levemos.

(ama, comentário sobre Mc 13 33-37, 2014.10.06)


Leitura espiritual


São Josemaria Escrivá

145           
Maria faz-nos sentir irmãos

Não podemos conviver filialmente com Maria e pensar apenas em nós mesmos, nos nossos problemas. Não se pode tratar com a Virgem e ter, egoisticamente, problemas pessoais. Maria leva a Jesus e Jesus é primogenitus in multis fratribus, primogénito entre muitos irmãos. Conhecer Jesus, portanto, é compreendermos que a nossa vida não pode ter outro sentido senão o de entregar-nos ao serviço dos outros. Um cristão não pode reduzir-se aos seus problemas pessoais, pois tem de viver face à Igreja universal, pensando na salvação de todas as almas.

Deste modo, até aquelas facetas que poderiam considerar-se mais íntimas e privadas - a preocupação pelo progresso interior - não são, na realidade, individuais, visto que a santificação forma uma só coisa com o apostolado. Havemos de esforçar-nos, na nossa vida interior e no desenvolvimento das virtudes cristãs, pensando no bem de toda a Igreja, dado que não poderíamos fazer o bem e dar a conhecer Cristo, se na nossa vida não se desse um esforço sincero por realizar os ensinamentos do Evangelho.

Impregnadas deste espírito, as nossas orações, ainda que comecem por temas e propósitos aparentemente pessoais, acabam sempre por ir ter ao serviço dos outros. E, se caminharmos pela mão da Virgem Santíssima, Ela fará com que nos sintamos irmãos de todos os homens, porque todos somos Filhos desse Deus de que Ela é filha, esposa e mãe.

Os problemas dos outros devem ser os nossos problemas. A fraternidade cristã deve estar bem no fundo da nossa alma, de tal modo que nenhuma pessoa nos seja indiferente. Maria, Mãe de Jesus, que O criou, O educou e O acompanhou durante a sua vida terrena e agora está junto d'Ele nos Céus, ajudar-nos-á a reconhecer Jesus em quem passa ao nosso lado, tornado presente para nós nas necessidades dos nossos irmãos, os homens.

146           
Naquela "romaria" de que vos falava ao princípio, enquanto caminhávamos até à ermida de Sonsoles, passámos junto a uns campos de trigo. A messe brilhava ao sol, ondulada pelo vento. Veio-me então à memória um texto do Evangelho, umas palavras que o Senhor dirigiu ao grupo dos seus discípulos: Não dizeis vós que dentro de quatro meses chegará o tempo da ceifa? Pois Eu vos digo: erguei os olhos e vede; os campos estão brancos para a ceifa. Lembrei-me uma vez mais de que o Senhor queria meter em nossos corações o mesmo empenho, o mesmo fogo que dominava o Seu. E, de boa vontade, afastando-me um pouco do caminho, teria apanhado umas espigas que me serviriam para recordá-lo.

É preciso abrir os olhos, é preciso saber olhar ao nosso redor e perceber os chamamentos que Deus nos faz através daqueles que nos rodeiam. Não podemos viver de costas para a multidão, encerrados no nosso pequeno mundo. Não foi assim que Jesus viveu. Os Evangelhos falam-nos muitas vezes da sua misericórdia, da sua capacidade de participar na dor e nas necessidades dos outros: compadece-Se da viúva de Naim, chora pela morte de Lázaro, preocupa-se com as multidões que O seguem e não têm que comer; compadece-Se sobretudo dos pecadores, dos que caminham pelo mundo sem conhecerem a luz nem a verdade. Ao desembarcar, viu Jesus uma grande multidão e compadeceu-Se deles porque eram como ovelhas sem pastor. E começou então a ensiná-los demoradamente.

Quando somos verdadeiramente filhos de Maria, compreendemos essa atitude do Senhor, torna-se grande o nosso coração e ficamos penetrados de misericórdia. Doem-nos então os sofrimentos, as misérias, os erros, a solidão, a angústia, a dor dos outros homens, nosso irmãos. E sentimos a urgência de ajudá-los nas suas necessidades e de lhes falar de Deus para que saibam tratá-Lo como filhos e possam conhecer as delicadezas maternais de Maria.

147           
Ser Apóstolo de Apóstolos

Encher de luz o mundo, ser sol e luz - assim definiu o Senhor a missão dos seus discípulos. Levar até aos confins da Terra a boa nova do amor de Deus - a isso devem dedicar a vida, de um modo ou doutro, todos os cristãos.

Direi mais: temos de sentir o desejo de não estar sós; temos de animar outros a contribuírem para essa missão divina de levar a alegria e a paz aos corações dos homens. À medida que progredis, atraí a vós os outros - escreve S. Gregório Magno. Desejai ter companheiros no caminho para o Senhor.

Mas lembrai-vos de que, cum dormirem homines, enquanto os homens dormiam, veio o semeador do joio, diz o Senhor numa parábola. Nós, os homens, estamos expostos a deixar-nos levar pelo sono do egoísmo, da superficialidade, desperdiçando o coração em mil experiências passageiras, evitando aprofundar o verdadeiro sentido das realidades terrenas. Triste coisa é esse sono, que sufoca a dignidade do homem e o torna escravo da tristeza!

Há um caso que nos deve doer sobremaneira: o daqueles cristãos que podiam dar mais e não se decidem; que podiam entregar-se totalmente vivendo todas as consequências da sua vocação de filhos de Deus, mas resistem a ser generosos. Deve-nos doer, porque a graça da Fé não se nos dá para ficar oculta, mas para brilhar diante dos homens; porque, além disso, está em jogo a felicidade temporal e eterna dos que procedem assim. A vida cristã é uma maravilha divina, com promessa de imediata satisfação e serenidade, mas com a condição de sabermos apreciar o dom de Deus, sendo generosos sem medida.

É necessário, portanto, despertar os que tenham caído nesse mau sono, recordar-lhes que a vida não é um divertimento, mas um tesouro divino que há que fazer frutificar. É necessário também ensinar o caminho aos que têm boa vontade e bons desejos mas não sabem como pô-los em prática. Cristo urge-nos. Cada um de vós há-de ser, não só apóstolo, mas apóstolo de apóstolos, arrastando outros convosco, movendo os demais para que também eles dêem a conhecer Jesus Cristo.

148           
Talvez algum de vós me pergunte como pode dar esse conhecimento às pessoas. E eu respondo-vos: com naturalidade, com simplicidade, vivendo como viveis, no meio do mundo, entregues ao vosso trabalho profissional e aos cuidados da vossa família, participando em todos os ideais nobres, respeitando a legítima liberdade de cada um.

Desde há quase trinta anos, Deus pôs no meu coração o anseio de fazer compreender às pessoas de qualquer estado, condição ou ofício, esta doutrina: a vida corrente pode ser santa e cheia de Deus; o Senhor chama-nos a santificar o trabalho quotidiano, porque aí está também a perfeição do cristão. Consideramo-lo uma vez mais, contemplando a vida de Maria.

Não nos esqueçamos de que a quase totalidade dos dias que Nossa Senhora passou na Terra decorreram de forma muito semelhante à vida diária de muitos milhões de mulheres, ocupadas em cuidar da sua família, em educar os seus filhos, em levar a cabo as tarefas do lar. Maria santifica as mais pequenas coisas, aquilo que muitos consideram erradamente como não transcendente e sem valor: o trabalho de cada dia, os pormenores de atenção com as pessoas queridas, as conversas e as visitas por motivo de parentesco ou de amizade... Bendita normalidade, que pode estar cheia de tanto amor de Deus!

Na verdade, é isso o que explica a vida de Maria: o amor. Um amor levado até ao extremo, até ao esquecimento completo de si mesma, contente por estar onde Deus quer que esteja e cumprindo com esmero a vontade divina. Isso é o que faz com que o mais pequeno dos seus gestos nunca seja banal, mas cheio de significado. Maria, nossa Mãe, é para nós exemplo e caminho. Havemos de procurar ser como Ela nas circunstâncias concretas em que Deus quis que vivêssemos.

Procedendo deste modo, daremos aos que nos cercam o testemunho de uma vida simples e normal, com as limitações e com os defeitos próprios da nossa condição humana, mas coerente. E assim, vendo-vos iguais a eles em tudo, os outros serão levados a perguntar-nos: como se explica a vossa alegria? Donde tirais forças para vencer o egoísmo e o comodismo? Quem vos ensina a viver a compreensão, o espírito de convivência, a entrega, o serviço dos demais?

É então o momento de lhes descobrirdes o segredo divino da existência cristã, falando-lhes de Deus, de Cristo, do Espírito Santo, de Maria. É o momento de procurar transmitir-lhes, através da nossa pobre palavra, a loucura do amor de Deus que a graça derramou em nossos corações.

149           
S. João conserva no seu Evangelho uma frase maravilhosa da Virgem, num dos episódios que já considerámos: o das bodas de Caná. Narra-nos o evangelista que dirigindo-se aos serventes, Maria lhes disse: Fazei tudo o que Ele vos disser. É disso que se trata - de levar as almas a situarem-se diante de Jesus e a perguntarem-Lhe: Domine, quid me vis facere? Senhor, que queres que eu faça?

O apostolado cristão - e refiro-me agora em concreto ao de um cristão corrente, ao do homem ou da mulher que vive realmente como outro qualquer entre os seus iguais - é uma grande catequese, em que, através de uma amizade leal e autêntica, se desperta nos outros a fome de Deus, ajudando-os a descobrir novos horizontes - com naturalidade, com simplicidade, como já disse, com o exemplo de uma fé bem vivida, com a palavra amável, mas cheia da força da verdade divina.

Sede audazes. Contais com a ajuda de Maria, Regina apostolorum. E Nossa Senhora, sem deixar de se comportar como Mãe, sabe colocar os filhos diante das suas próprias responsabilidades. Maria, aos que se aproximam d'Ela e contemplam a sua vida, faz-lhes sempre o imenso favor de levá-los até à Cruz, de colocá-los defronte do exemplo do Filho de Deus. E, nesse confronto, em que se decide a vida cristã, Maria intercede para que a nossa conduta culmine numa reconciliação do irmão mais pequeno - tu e eu - com o Filho primogénito do Pai.

Muitas conversões, muitas decisões de entrega ao serviço de Deus, foram precedidas de um encontro com Maria. Nossa Senhora fomentou os desejos de busca, activou maternalmente a inquietação da alma, fez aspirar a uma transformação, a uma vida nova. E assim, o fazei o que Ele vos disser converteu-se numa realidade de amorosa entrega, na vocação cristã que ilumina desde então toda a nossa vida.

Este tempo de conversa diante do Senhor, em que meditamos sobre a devoção e o carinho à sua Mãe e nossa Mãe, pode, portanto, reavivar a nossa fé. Está a começar o mês de Maio. O Senhor quer que não desaproveitemos esta ocasião de crescer no seu amor através da intimidade com a sua Mãe. Que cada dia saibamos ter para com Ela aqueles pormenores filiais - pequenas coisas, atenções delicadas - que se vão tornando grandes realidades de santidade pessoal e de apostolado, quer dizer, empenho constante por contribuir para a salvação que Cristo veio trazer ao mundo.

Santa Maria, spes nostra, ancilla Domini, sedes Sapientiae, ora pro nobis! Santa Maria, esperança nossa, escrava do Senhor, sede de Sabedoria, roga por nós!

150           
Homilia pronunciada no dia 28 de Maio de 1964, Festa do Corpo de Deus

Hoje, festa do Corpo de Deus, meditamos juntos a profundidade do Amor do Senhor, que o levou a ficar oculto sob das espécies sacramentais, e é como se ouvíssemos, fisicamente, aqueles seus ensinamentos à multidão: Eis que o semeador saiu a semear. E, quando semeava, uma parte da semente caiu ao longo do caminho, e vieram as aves do céu e comeram-na. Outra parte caiu em lugar pedregoso, onde havia pouca terra; e logo nasceu porque estava à superfície; mas, saindo o sol, queimou-se e, porque não tinha raiz, secou. Outra parte caiu entre os espinhos, e os espinhos cresceram e sufocaram-na. Outra parte caiu em boa terra e frutificou; uns grãos renderam cem por um, outros sessenta, outros trinta.

A cena é actual. O semeador divino lança agora, também, a sua semente. A obra da salvação continua a cumprir-se e o Senhor quer servir-se de nós: deseja que nós, os cristãos, abramos ao seu amor todos os caminhos da Terra; convida-nos a propagar a mensagem divina, com a doutrina e com o exemplo, até aos últimos recantos do mundo. Pede-nos que, sendo cidadãos da sociedade eclesial e da civil, ao desempenhar com fidelidade os nossos deveres, sejamos cada um outro Cristo, santificando o trabalho profissional e as obrigações do próprio estado.

Se olharmos à nossa volta, para este mundo que amamos porque foi feito por Deus, dar-nos-emos conta de que se verifica a parábola: a palavra de Jesus Cristo é fecunda, suscita em muitas almas desejos de entrega e de fidelidade. A VIDA e o comportamento dos que servem a Deus mudaram a história, e inclusivamente muitos dos que não conhecem o Senhor regem-se - talvez sem sequer o advertirem - por ideais nascidos do Cristianismo.

Vemos também que parte da semente cai em terra estéril, ou entre espinhos e abrolhos: há corações que se fecham à luz da fé. Os ideais de paz, de reconciliação, de fraternidade, são aceites e proclamados, mas - não poucas vezes - são desmentidos com os factos. Alguns homens empenham-se inutilmente em afogar a voz de Deus, impedindo a sua difusão com a força bruta ou então com uma arma, menos ruidosa, mas talvez mais cruel, porque insensibiliza o espírito: a indiferença.

151           
O pão da VIDA eterna

Agradar-me-ia que, ao considerar tudo isto, tomássemos consciência da nossa missão de cristãos, voltássemos os olhos para a Sagrada Eucaristia, para Jesus que, presente entre nós, nos constituiu seus membros: vos estis corpus Christi et membra de membro, vós sois o corpo de Cristo e membros unidos a outros membros. O nosso Deus decidiu ficar no Sacrário para nos alimentar, para nos fortalecer, para nos divinizar, para dar eficácia ao nosso trabalho e ao nosso esforço. Jesus é simultaneamente o semeador, a semente e o fruto da sementeira: o Pão da vida eterna.

Este milagre, continuamente renovado, da Sagrada Eucaristia, encerra todas as características do modo de agir de Jesus. Perfeito Deus e perfeito homem, Senhor dos Céus e da Terra, oferece-Se-nos como sustento, da maneira mais natural e corrente. Assim espera o nosso amor, desde há quase dois mil anos. É muito tempo e não é muito tempo; porque, quando há amor, os dias voam.

Vem-me à memória uma encantadora poesia galega, uma das cantigas de Afonso X, o Sábio. É a lenda de um monge que, na sua simplicidade, suplicou a Santa Maria que o deixasse contemplar o céu, ainda que fosse só por um instante. A Virgem acolheu o seu desejo, e o bom monge foi levado ao Paraíso. Quando regressou, não reconhecia nenhum dos moradores do mosteiro: a sua oração, que lhe tinha parecido brevíssima, tinha durado três séculos. Três séculos não são nada, para um coração que ama. Assim compreendo eu esses dois mil anos de espera do Senhor na Eucaristia. É a espera de Deus, que ama os homens, que nos procura, que nos quer tal como somos - limitados, egoístas, inconstantes - mas com capacidade para descobrirmos o seu carinho infinito e para nos entregarmos inteiramente a Ele.

Por amor e para nos ensinar a amar, veio Jesus à Terra e ficou entre nós na Eucaristia. Como tivesse amado os seus que viviam no mundo, amou-os até ao fim; com estas palavras começa S. João a narração do que sucedeu naquela véspera da Páscoa, em que Jesus - refere-nos S. Paulo - tomou o pão, e dando graças, o partiu, e disse: Tomai e comei; isto é o meu corpo que será entregue por vós; fazei isto em memória de mim. Igualmente também, depois da ceia, tomou o cálice, dizendo: Este cálice é o novo testamento do meu sangue; fazei isto em memória de mim todas as vezes que o beberdes.

(cont)




Temas para meditar - 287


Comunismo



O manifesto desprezo do homem, nesta resposta de Lenine, a alguém que lhe censurava o sacrifício de tantas vítimas nas suas experiências revolucionárias: Que importa? Racha-se lenha: saltam cavacos! Ainda que fosse preciso empregar dez milhões de corpos humanos, na edificação do comunismo, sempre haviam de sobejar os suficientes para povoar o nosso território.


(henri massisA nova Rússia, Livraria Tavares Martins, Porto, I945, nr. 117)