07/10/2016

Leitura espiritual

Leitura Espiritual


Amigos de Deus



São Josemaria Escrivá

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Veracidade e justiça

As virtudes humanas exigem de nós um esforço contínuo, porque não é fácil manter durante muito tempo uma têmpera de honradez perante as situações que parecem comprometer a nossa segurança.
Reparemos na limpidez da veracidade: mas será certo que caiu em desuso?
Terá triunfado definitivamente a conduta de compromisso, o dourar a pílula e o pintar a fachada?
Teme-se a verdade.
Por isso se lança mão de um expediente mesquinho: afirmar que ninguém vive nem diz a verdade e que todos recorrem à simulação e à mentira.

Felizmente não é assim.
Existem muitas pessoas - cristãos e não cristãos - decididas a sacrificar a sua honra e a sua fama pela verdade, que não andam a saltitar constantemente de um lado para o outro para procurar o sol que mais aquece.
São os mesmos que, por amor à sinceridade, sabem rectificar quando descobrem que se enganaram.

Só não rectifica quem começa por mentir, quem reduz a verdade a uma palavra sonora para encobrir as suas claudicações.

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Se formos verazes, seremos justos.

Nunca me cansaria de falar da justiça, mas aqui só podemos apontar alguns aspectos, sem perder de vista qual é a finalidade de todas estas reflexões: edificar uma vida interior real e autêntica sobre os alicerces profundos das virtudes humanas.
Justiça é dar a cada um o que é seu.
Mas acrescentaria que isso não basta.
Por muito que cada um mereça, é preciso dar-lhe mais, porque cada alma é uma obra-prima de Deus.

A melhor caridade consiste em exceder-se generosamente na justiça.
Esta caridade costuma passar despercebida, mas a sua fecundidade estende-se ao Céu e à terra.
É um erro pensar que as expressões meio termo ou justo meio, na medida em que são característica das virtudes morais, significam mediocridade: algo como a metade do que é possível realizar.
Esse meio entre o excesso e o defeito é um cume, um ponto álgido: o melhor que a prudência indica.
Além disso, em relação às virtudes teologais não se admitem equilíbrios: não se pode crer, esperar ou amar de mais.
E esse amor sem limites a Deus reverte a favor dos que nos rodeiam, em abundância de generosidade, de compreensão, de caridade.

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Os frutos da temperança

Temperança é domínio.

Nem tudo o que experimentamos no corpo e na alma deve deixar-se à rédea solta.
Nem tudo o que se pode fazer se deve fazer.
É mais cómodo deixar-se arrastar pelos impulsos a que chamam naturais; mas no fim desse caminho cada um encontra a tristeza, o isolamento na sua própria miséria.

Há pessoas que não querem recusar nada ao estômago, aos olhos, às mãos; recusam-se a ouvir quem as aconselha a viver uma vida limpa.
Utilizam a faculdade de gerar - que é uma realidade nobre, participação no poder criador de Deus - desordenadamente, como um instrumento ao serviço do egoísmo.

Mas nunca me agradou falar de impureza.
Quero considerar os frutos da temperança, quero ver o homem verdadeiramente homem, que não está preso às coisas que brilham sem valor, como as bujigangas que a pega junta no ninho.
Esse homem sabe prescindir do que prejudica a sua alma e apercebe-se de que o sacrifício é só aparente: porque ao viver assim - com sacrifício - livra-se de muitas escravidões e consegue, no íntimo do seu coração, saborear todo o amor de Deus.

A vida ganha então as perspectivas que a intemperança esbate; ficamos em condições de nos preocuparmos com os outros, de compartilhar com todos o que nos pertence, de nos dedicarmos a tarefas grandes.
A temperança torna a alma sóbria, modesta, compreensiva; facilita-lhe um recato natural que é sempre atraente, porque se nota o domínio da inteligência na conduta.
A temperança não supõe limitação, mas grandeza.
Há muito maior privação na intemperança, porque o coração abdica de si próprio para servir o primeiro que lhe fizer soar aos ouvidos o ruído de uns chocalhos de lata.

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A sabedoria do coração

O sábio de coração será chamado prudente, lê-se no livro dos Provérbios.
Não compreenderíamos a prudência se a concebêssemos como pusilanimidade e falta de audácia.
A prudência manifesta-se no hábito que predispõe a actuar bem: a esclarecer o fim e a procurar os meios mais convenientes para o alcançar.

Mas a prudência não é um valor supremo.
Temos de perguntar sempre a nós próprios: prudência, para quê? Porque existe uma falsa prudência - a que deveríamos antes chamar astúcia - que está ao serviço do egoísmo, que se serve dos recursos mais adequados para atingir fins retorcidos.
Usar então de muita perspicácia não leva senão a agravar a má disposição e a merecer aquela censura que Santo Agostinho formulava, quando pregava ao povo: pretendes forçar o coração de Deus, que é sempre recto, para que se acomode à perversidade do teu?
Essa é a falsa prudência daquele que pensa que as suas próprias forças são mais do que suficientes para se justificar.

Não vos queirais ter a vós mesmos por sábios, diz S. Paulo, porque está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios e reprovarei a prudência dos prudentes.

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S. Tomás aponta três actos deste bom hábito da inteligência: pedir conselho, julgar rectamente e decidir.
O primeiro passo da prudência é o reconhecimento das nossas limitações: a virtude da humildade.
Admitir, em determinadas questões, que não conseguimos chegar a tudo, que não podemos abarcar, em tantos e tantos casos, circunstâncias que é preciso não perder de vista à hora de julgar.
Por isso nos socorremos de um conselheiro.
Não de um qualquer, mas de quem estiver capacitado e animado pelos mesmos desejos sinceros de amar a Deus e de o seguir fielmente.
Não é suficiente pedir um parecer; temos de nos dirigir a quem no-lo possa dar desinteressada e rectamente.

Depois, é necessário julgar, porque a prudência exige habitualmente uma determinação pronta e oportuna.
Se às vezes é prudente atrasar a decisão até conseguir todos os elementos do juízo, noutras ocasiões seria uma grande imprudência não começar a pôr em prática, quanto antes, aquilo que julgamos necessário fazer, especialmente quando está em jogo o bem dos outros.

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Esta sabedoria do coração, esta prudência nunca se converterá na prudência da carne a que se refere S. Paulo: a daqueles que têm inteligência, mas procuram não a utilizar para descobrir e amar Nosso Senhor.

A verdadeira prudência é a que permanece atenta às insinuações de Deus e, em vigilante escuta, recebe na alma promessas e realidades de salvação: Eu te glorifico, Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e prudentes e as revelastes aos pequeninos.

Sabedoria do coração que orienta e rege muitas outras virtudes.
Pela prudência o homem é audaz, sem insensatez; não evita, por ocultas razões de comodismo, o esforço necessário para viver plenamente segundo os desígnios de Deus.
A temperança do prudente não é insensibilidade nem misantropia; a sua justiça não é dureza; a sua paciência não é servilismo.

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Não é prudente quem nunca se engana, mas quem sabe rectificar os seus erros.
É prudente, porque prefere não acertar vinte vezes a deixar-se ficar num cómodo abstencionismo.
Não age com precipitação desenfreada ou com absurda temeridade, mas assume o risco das suas decisões e não renuncia a conseguir o bem com medo de não acertar.
Na nossa vida encontramos companheiros ponderados, objectivos, que não se deixam arrastar pela paixão inclinando a balança para o lado que mais lhes convém.
Quase instintivamente, fiamo-nos dessas pessoas, porque procedem sempre bem, com rectidão, sem presunção e sem espectáculo.

Esta virtude cordial é indispensável no cristão; mas os objectivos últimos da prudência não são a concórdia social ou a tranquilidade de evitar fricções.
O motivo fundamental é o cumprimento da Vontade de Deus, que nos quer simples, mas não pueris; amigos da verdade, mas nunca aturdidos ou superficiais.
O coração prudente possuirá a ciência; e essa ciência é a do amor de Deus, o saber definitivo, o que pode salvar-nos, dando a todas as criaturas frutos de paz e de compreensão e, para cada alma, a vida eterna.

(cont)


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