01/11/2016

Leitura espiritual


Leitura Espiritual


Amigos de Deus



São Josemaria Escrivá

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Misturado com a multidão, um daqueles peritos que já não conseguiam discernir os ensinamentos revelados a Moisés, ensinamentos emaranhados por eles próprios numa casuística estéril, faz uma pergunta ao Senhor.
Abre Jesus os seus lábios divinos para falar àquele doutor da Lei e responde-lhe pausadamente, com a firme certeza de quem tem disso viva experiência: amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu espírito.
Este é o maior e o primeiro dos mandamentos.
O segundo é semelhante a este: amarás o teu próximo como a ti mesmo.
Nestes dois mandamentos estão contidos toda a Lei e os profetas.

Vede agora o mestre reunido com os seus discípulos na intimidade do Cenáculo.
Ao aproximar-se o momento da sua Paixão, o Coração de Cristo, rodeado por aqueles que ama, abre-se em inefáveis labaredas: dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros e que, do mesmo modo que eu vos amei, vos ameis uns aos outros.
Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros.

Para vos aproximardes do Senhor através das páginas do Santo Evangelho, recomendo sempre que vos esforceis por participar em cada cena como um personagem mais.
Assim - conheço tantas almas normais e correntes que o fazem! - recolher-vos-eis como Maria, suspensa das palavras de Jesus, ou, como Marta, atrever-vos-eis a manifestar-lhe sinceramente as vossas inquietações, mesmo as mais pequenas.

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Senhor, porque chamas novo a este mandamento?
Como acabamos de ouvir, o amor ao próximo estava prescrito no Antigo Testamento e recordareis também que Jesus, mal começa a sua vida pública, amplia essa exigência com divina generosidade: ouvistes que foi dito: amarás o teu próximo e aborrecerás o teu inimigo.
Eu peço-vos mais: amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos aborrecem e orai pelos que vos perseguem e caluniam.

Senhor, deixa-nos insistir: porque continuas a chamar novo a este preceito?
Naquela noite, poucas horas antes de te imolares na Cruz, durante aquela conversa íntima com os que - apesar das suas fraquezas e misérias pessoais, como as nossas - te acompanharam até Jerusalém.
Tu revelaste-nos a medida insuspeitada da caridade: como eu vos amei.
Como não haviam de te entender os Apóstolos, se tinham sido testemunhas do teu amor insondável!

O ensinamento e o exemplo do Mestre são claros e precisos.
Sublinhou com obras a sua doutrina.
E, no entanto, tenho pensado muitas vezes que, passados vinte séculos, ainda continua a ser um mandamento novo, porque muito poucos homens se têm preocupado em levá-lo à prática; os restantes, a maioria, preferiram e preferem desconhecê-lo.
Com um egoísmo exacerbado, perguntam:
- Para quê mais complicações?
Já me bastam as que tenho com as minhas coisas.

Não é admissível semelhante atitude entre os cristãos.
Se professamos essa mesma fé, se ambicionamos verdadeiramente seguir as pegadas, tão nítidas, que os passos de Cristo deixaram na terra, não podemos conformar-nos com evitar aos outros os males que não desejamos para nós mesmos.
Isto é muito, mas é muito pouco, quando compreendemos que a medida do nosso amor é definida pelo comportamento de Jesus.
Além disso, Ele não nos propõe essa norma de conduta como uma meta longínqua, como o coroamento de toda uma vida de luta.
É - e insisto que deve sê-lo para que o traduzas em propósitos concretos - o ponto de partida, porque Nosso Senhor o indica como sinal prévio: nisto conhecerão que sois meus discípulos.

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Jesus Cristo, Nosso Senhor, encarnou e tomou a nossa natureza, para se mostrar à humanidade como modelo de todas as virtudes. Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, convida-nos Ele.

Mais tarde, quando explica aos Apóstolos o sinal pelo qual os reconhecerão como cristãos, não diz: porque sois humildes.
Ele é a pureza mais sublime, o Cordeiro imaculado.
Nada podia manchar a sua santidade perfeita, sem mácula.
Mas também não diz: saberão que se encontram diante de discípulos meus, porque sois castos e limpos.

Passou por este mundo com o mais completo desprendimento dos bens da terra. Sendo Criador e Senhor de todo o universo, faltava-lhe até um sítio onde pudesse reclinar a cabeça.
No entanto, não comenta: saberão que sois dos meus porque não vos apegastes às riquezas.
Permanece quarenta dias e quarenta noites no deserto em jejum rigoroso, antes de se dedicar à pregação do Evangelho.
E também não afirma aos seus: compreenderão que servis a Deus, porque não sois comilões nem bebedores.

A característica que distinguirá os apóstolos, os cristãos autênticos de todos os tempos, já a ouvimos: nisto - precisamente nisto - conhecerão todos que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros.

Parece-me perfeitamente lógico que os filhos de Deus se tenham sentido sempre comovidos - como tu e eu neste momento - perante essa insistência do Mestre.
O Senhor não estabelece como prova de fidelidade dos seus discípulos os prodígios ou os milagres inauditos, apesar de lhes ter conferido o poder de os realizarem, pelo Espírito Santo.
O que lhes comunica?
Conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros.

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Pedagogia Divina

Não odiar o inimigo, não devolver mal por mal, renunciar à vingança, perdoar sem rancor considerava-se então - e também agora, não nos enganemos - uma conduta insólita, demasiado heróica, fora do normal.
Até aqui chega a mesquinhez das criaturas!
Jesus Cristo, que veio salvar todos os povos e deseja associar os cristãos à sua obra redentora, quis ensinar aos seus discípulos - a ti e a mim - uma caridade grande, sincera, mais nobre e valiosa: devemos amar-nos mutuamente como Cristo nos ama a cada um de nós.
Só desta maneira, isto é, imitando o exemplo divino - dentro da nossa rudeza pessoal - conseguiremos abrir o nosso coração a todos os homens, amar de um modo mais elevado, inteiramente novo.

Que bem puseram os primeiros cristãos em prática esta caridade ardente, caridade que sobressaía e transbordava dos limites da simples solidariedade humana ou da benignidade de carácter.
Amavam-se uns aos outros de modo afectuoso e forte, através do Coração de Cristo.
Um escritor do século II, Tertuliano, transmitiu-nos o comentário dos pagãos, comovidos ao presenciarem o comportamento dos fiéis de então, tão cheio de atractivo sobrenatural e humano: Vede como se amam, repetiam.

Se notas que não mereces esse louvor agora ou em tantas ocasiões do dia-a-dia; que o teu coração não reage como devia às exigências divinas, pensa também que chegou o momento de rectificares.
Ouve o convite de S. Paulo: façamos o bem a todos e especialmente àqueles que pertencem, mediante a fé, à mesma família que nós, ao Corpo Místico de Cristo.

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O principal apostolado que nós, os cristãos, temos de realizar no mundo, o melhor testemunho de fé é contribuir para que dentro da Igreja se respire o clima de autêntica caridade.
Quando não nos amamos verdadeiramente, quando há ataques, calúnias e inimizades, quem se sentirá atraído pelos que afirmam que pregam a Boa Nova do Evangelho?

É muito fácil, está muito na moda afirmar verbalmente o amor a todas as criaturas, crentes e não crentes.
Mas se quem fala assim maltrata os irmãos na fé, duvido de que na sua conduta haja mais do que palavreado hipócrita.
Pelo contrário, quando amamos no Coração de Cristo os que são filhos de um mesmo Pai, associados na mesma fé e herdeiros de uma mesma esperança, a nossa alma engrandece-se e arde em desejos de que todos se aproximem de Nosso Senhor.

Estou a recordar-vos as exigências da caridade e talvez algum de vós tenha pensado que falta precisamente essa virtude nas palavras que acabo de pronunciar.
Nada mais oposto à realidade.
Posso garantir-vos que, com santo orgulho e sem falsos ecumenismos, me enchi de alegria quando, no passado Concílio Vaticano II, ganhava corpo com renovada intensidade a preocupação de levar a verdade aos que andam afastados do único Caminho, do de Jesus, pois me consome a ânsia de que se salve toda a humanidade.

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Sim, foi bem grande a minha alegria, porque também via confirmado novamente um apostolado tão da predilecção do Opus Dei, o apostolado ad fidem, que não rejeita nenhuma pessoa e admite os não cristãos, os ateus, os pagãos a participarem, na medida possível, dos bens espirituais da nossa Associação.
Isto tem uma longa história, de dor e de lealdade, que já contei em outras ocasiões.
Por isso repito, sem medo, que considero um zelo hipócrita, embusteiro, o que impele a tratar bem os que estão longe, pisando ou desprezando os que vivem connosco a mesma fé.
Também não acredito que te interesses pelo pobre mais pobre da rua, se martirizas os de tua casa, se és indiferente às suas alegrias, às suas penas e aos seus desgostos e se não te esforças por compreender ou por passar por alto os seus defeitos, sempre que não sejam ofensa a Deus.

(cont)


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