11/01/2017

Leitura espiritual


Leitura espiritual



A Cidade de Deus 



Vol. 1

LIVRO III

CAPÍTULO V

Não está provado que os deuses tenham punido o adultério de Páris pois não se vingaram do da mãe de Rómulo.

Mas ponhamos de parte se Vénus teria gerado Eneias da sua união com Anquises, ou se, da união com a filha de Númitor, Marte teria gerado Rómulo. Uma questão semelhante se levanta nas nossas Escrituras. Nelas se pergunta se os anjos prevaricadores se uniram às filhas dos homens, nascendo daí os gigantes, isto é, os homens de grande esta­tura e grande força que então povoaram a Terra. Por agora, limitamo-nos a esclarecer este duplo problema: se é verdade o que entre eles se lê acerca da mãe de Eneias e do pai de Rómulo — como é que podem desagradar aos deuses os adultérios dos homens, se eles os praticam entre si de mútuo acordo? Se, porém, é falso — não podem então irritar-se com os verdadeiros adultérios dos homens, eles que se comprazem com os falsos deles. A isto acresce que, se não se acredita no adultério de Marte para se não crer também no de Vénus, não há qualquer razão para sustentar que a mãe de Rómulo exerceu o coito com um ser divino. Ela era vestal. Por isso os deuses deveriam vingar nos Romanos este infame sacrilégio mais severamente do que vingaram o adultério de Páris nos Troianos. Na verdade, os próprios antigos Romanos enterravam vivas as vestais surpreendidas em flagrante crime de fornicação, ao passo que, condenando-as embora, não puniam com a morte as mulheres adúlteras. Chegavam a defender mais severamente os santuários, que consideravam divinos, do que os leitos conjugais humanos.

CAPÍTULO VI

Os deuses não se vingaram do fratricídio de Rómulo.

Acrescento ainda que, se os crimes dos homens desagradaram a esses numes de tal maneira que, ofendidos pelo acto de Páris, abandonaram Tróia ao ferro e ao fogo, mais os deveria mover contra os Romanos o fratricídio [i] de Rómulo do que contra os Troianos o ultraje de um marido. Era mais de provocar a cólera o fratricídio numa cidade que nascia do que o adultério numa cidade que reinava. Nem interessa à questão de que tratamos, se Rómulo teria feito ou mandado fazer o que muitos negam por impudência, muitos põem em dúvida por vergonha e muitos dissimulam por desgosto. É notório o que consta: que o irmão de Rómulo não foi assassinado por inimigos nem por estrangeiros. Se Rómulo o perpetrou ou ordenou — o que é certo é que ele era chefe dos Romanos mais do que Páris o era dos Troianos. Porque é que então o raptor da esposa de outrem provocou a ira dos deuses contra os Troianos e este matador de seu irmão atraiu a protecção dos mesmos deuses para os Romanos? Mas, se aquele crime é alheio a acto ou a ordem de Rómulo, então, porque sem dúvida ele deve ser punido, foi toda a cidade que o cometeu, uma vez que não lhe ligou importância; e a cidade matou, não apenas um irmão, mas, o que é pior, um pai. Efectivamente tanto um como o outro foram seu fundador, embora um tenha sido impedido de reinar por ter sido suprimido criminosamente. Não se vê, parece-me, o que Tróia fez de mal para merecer que os deuses a abandonassem e permitissem a sua destruição — e o que é que Roma fez de bom para os deuses habitarem nela e permitirem o seu progresso. A não ser que tenha sido porque, tendo fugido vencidos de Tróia, buscaram entre os Romanos refúgio para os enganarem de maneira idêntica. Pior ainda: mantiveram-se lá (em Tróia) para enganarem, como era seu hábito, os que iam agora habitar as mesmas terras — e cá (em Roma), exercendo ainda melhor os mesmos artifícios da sua arteirice, recolheram as maiores honrarias.

CAPÍTULO VII

Destruição de Tróia, consumada por Fímbria, general de Mário.

De facto, quando já tinham deflagrado as guerras civis, que é que de detestável tinha cometido Tróia para ser destruída, com mais feroci­dade e crueldade do que outrora pelos Gregos, por Fímbria, o pior dos partidários de Mário? Porque, então, muitos puderam fugir dela e muitos outros feitos prisioneiros, embora na servidão, pelo menos viveram. Mas Fímbria logo de início publicou um edito para a ninguém se poupar, e queimou toda a cidade e todos os homens que nela estavam. Isto mereceu ílion, não dos Gregos a quem tinha irritado com a sua iniquidade, mas dos Romanos nascidos da sua desgraça. Mas os deuses, que eram comuns, nada fizeram ou nada puderam, esta é que é a verdade, para afastarem a desgraça. Será que então

se retiraram todos, abandonando altares e santuários, estes deuses [ii]

que mantinham erguida aquela fortaleza restaurada depois do incêndio e da destruição dos antigos gregos? Mas se eles se retiraram, eu pergunto qual a razão — e na verdade acho tanto melhor a dos habitantes quanto pior a dos deuses. Efectivamente, aqueles fecharam as portas da cidade a Fímbria para a guardarem intacta para Sula. Por isso Fímbria, furioso, queimou-os ou antes aniquilou-os completamente. Até então Sula era o chefe do melhor partido político. Até então pretendia recuperar pelas armas a República. Ainda não tinham surgido os maus resultados destes bons começos. Que podiam, pois, fazer de melhor os cidadãos daquela cidade? Que coisa mais honesta, mais fiel, mais digna da sua estirpe romana do que conservar a cidade para a melhor causa dos Romanos e fechar as portas ao parricida da República Romana? Mas, olhai, defensores dos deuses, em que tamanha desgraça se lhes converteu essa decisão! Os deuses abandonaram os adúlteros e entregaram ílion às chamas dos Gregos para que das suas cinzas nascesse uma Roma mais casta. Mas, porque é que depois abandonaram essa mesma cidade, aparentada com os Romanos, que não se revoltou contra Roma, sua nobre filha, mas antes guardou a mais constante e religiosa fidelidade ao seu partido mais justo? E porque é que deixaram que ela fosse destruída não pelos fortes varões Gregos mas sim pelo mais imundo dos Romanos? Se desagradava aos deuses a causa dos partidários de Sula, a favor do qual aqueles desgraçados conservaram a cidade, fechando-lhe as portas — porque então prometeram e predisseram eles a Sula tamanhos sucessos? Não se reconhecem aqui os aduladores dos feli­zes, mais do que os defensores dos infelizes? Mesmo então ílion não foi destruída devido ao abandono dos deuses. Com efeito, os demónios sempre vigilantes para enganarem, fizeram o que puderam. Todas as suas estátuas foram derrubadas e queimadas com a cidade. Apenas, como escreve Lívio, se mantem íntegra, em tamanha ruína do seu templo, a de Minerva, não para que se diga em seu louvor:

Ó deuses pátrios sob cuja protecção está sempre Tróia [iii],

mas para que se não diga em sua defesa:

Retiram-se todos, abandonando altares e santuários, estes deuses [iv].

Na realidade, o que lhes foi permitido fazer, não era destinado a provar o seu poder, mas a mostrar a sua presença. [v]

CAPÍTULO VIII

Deveria Roma confiar nos deuses de ílion?

Com que prudência, depois do exemplo de Tróia, acabou Roma por confiar a sua guarda aos deuses de Tróia! Alguém dirá que eles já se tinham habituado a habitar em Roma quando ílion caiu sob os ataques de Fímbria. Porque é que então se manteve de pé a estátua de Minerva? Se estavam em Roma quando Fímbria destruiu ílion, então talvez estivessem em ílion quando Roma foi tomada e incendiada pelos Gauleses! Mas como têm um ouvido agudíssimo e são ligeiríssimos nos seus movimentos, depressa voltaram, ao grasnar dos gansos, para salvarem pelo menos a colina Capitolina que se tinha aguentado. De resto, para virem defender o resto da cidade, foram avisados tarde demais!

CAPÍTULO IX

Deverá considerar-se como um dom dos deuses a paz que se verificou durante o reinado de Numa?

Crêem eles ainda que Numa Pompílio, sucessor de Rómulo, foi ajudado pelos deuses a manter a paz durante todo o decurso do seu reinado e a manter fechadas as portas de Jano, que costumavam estar abertas em tempo de guerra, precisamente porque instituiu entre os Romanos muitos ritos sagrados.

Dever-se-ia agradecer àquele homem por tamanho sossego se ele ti­vesse sabido consagrá-lo a tarefas salutares e se, renunciando a uma perniciosíssima curiosidade, procurasse o verdadeiro Deus com verdadeira piedade. Não foram, porém, os deuses que concederam aquele sossego, mas provavelmente tê-lo-iam enganado menos se o não tivessem encontrado ocioso! É que quanto menos ocupado o encontraram tanto mais o ocuparam eles. Conta-nos Varrão o que é que ele maquinava e com que habilidades poderiam associar-se ele e a sua cidade a tais deuses. Mas se ele terá agradado ao Senhor, é assunto que será tratado mais pormenorizadamente na sua altura. Por agora trata-se, dos benefícios dos deuses. E é um grande beneficio a paz,' mas é um beneficio do verdadeiro Deus, como o sol, como a chuva e as outras vantagens da vida, que, em muitos casos, beneficiam também os ingratos e os perversos. Mas, se foram os deuses que concederam a Roma e a Pompílio esse tão grande beneficio, porque é que nunca mais o concederam ao império romano durante os períodos mais dignos de louvor? Será que os ritos sagrados, quando foram instituídos, eram mais úteis do que, quando já instituídos, se celebravam? Realmente, eles ainda não existiam então: começaram a existir desde que se acrescentaram ao culto. Mas depois já existiam e eram observados em vista da sua eficácia. Como é então que aqueles quarenta e três anos, ou trinta e nove, como querem outros, passaram em tão longa paz quando reinava Numa, e depois, apesar da celebração dos ritos, apesar do convite aos deuses para lhes presidirem, apesar da sua protecção e da sua defesa, durante o longo período que se estende da fundação de Roma até Augusto, se assinala como uma grande maravilha, apenas um ano durante o qual, após a Primeira Guerra Púnica, os Romanos puderam fechar as portas da guerra?

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Segundo a lenda Rómulo, fundador de Roma, matou seu irmão Remo, também da mesma cidade co-fundador.
[ii] Abscessere omties adytis arisque relictis Di,... Vergílio, Eneida, II, 351-352.
[iii] Di patrii, quorum semper sub numine Troja est. Id. Ib. IX, 247.
[iv] Abscessere omties adytis arisque relictis Di,... Vergílio, Eneida, II, 351-352.
[v] Di patrii, quorum semper sub numine Troja est. Id. Ib. IX, 247.

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