28/02/2017

Leitura espiritual


A CIDADE DE DEUS 



Vol. 1

LIVRO VIII

CAPÍTULO XVI

O que pensa o platónico Apuleio dos costumes e acções dos demónios.

Ao falar dos costumes dos demónios diz este platónico que eles são movidos pelas mesmas paixões que os homens, se irritam com as injúrias, se apaziguam com as homenagens e presentes, ficam contentes com as honras, se comprazem com os diversos ritos das cerimónias religiosas e se perturbam quando se comete nessas cerimónias alguma negligência. Diz ele ainda que é com eles que estão relacionados, além de outras coisas, os vaticínios dos áugures, dos arúspices, dos adivinhos e dos sonhos, e também dos prodígios dos mágicos. Define-os sumariamente dizendo que os demónios são: quanto ao género, animados; quanto à alma, sujeitos às paixões; quanto à mente, racionais; quanto ao corpo, aéreos; quanto ao tempo, eternos. Destas cinco características, as três primeiras são comuns a eles e a nós; a quarta é própria deles; partilham a quinta com os deuses. Mas, parece-me, das três que possuem connosco, duas são também comuns aos deuses. Realmente Apuleio diz que os deuses também são «animados»; e, ao atribuir a cada um o seu elemento, põe-nos a nós entre os «animados» terrestres com os outros seres que vivem e sentem na terra, coloca entre os «animados» aquáticos os peixes e os outros seres que nadam, entre os «animados» que habitam no ar põe os demónios, e os deuses entre os que vivem no éter.

 Portanto, por pertencerem ao género dos animados, os demónios têm isto de comum com os homens e também com os deuses e os brutos: pela inteligência são racionais com os deuses e os homens; pela duração são eternos como os deuses apenas; como sujeitos a paixões, quanto ao espírito, são como os homens apenas; como seres aéreos quanto ao corpo, são únicos. Consequentemente não constitui, para eles, grande vantagem pertencerem ao género dos seres animados, — pois também os brutos dele fazem parte; serem, quanto ao espírito, dotados de razão não os coloca acima de nós — pois também o somos; gozar da eternidade — que bem é esse sem a beatitude? Mais vale uma felicidade temporal do que uma eternidade miserável. Possuir uma alma sujeita a paixões — que superioridade sobre nós é essa, se nós também lhes estamos sujeitos e não podemos estar-lhes sujeitos sem sermos infelizes? Ter um corpo aéreo — que estima merece tal coisa, se a natureza de uma alma, qualquer que ela seja, é preferível a todos os corpos e, por conseguinte, um culto religioso, digna homenagem da alma, jamais pode pertencer a um ser inferior à alma? Se entre as qualidades que atribui aos demónios Apuleio tivesse contado a virtude, a sabedoria, a felicidade e tivesse declarado que eles a possuíam eternamente e em comum com os deuses, certamente que lhes teria reconhecido um privilégio desejável e de alto preço. Não é, porém, a eles que é preciso honrar como Deus, mas antes Àquele de quem sabemos terem recebido tudo isso. Pelo contrário, quão pouco merecem as honras divinas estes seres animados aéreos que só têm razão para serem infelizes, só têm paixões para serem infelizes, só têm a eternidade para na infelicidade permanecerem sem fim!

CAPÍTULO XVII

Convirá ao homem adorar espíritos de cujos vícios se deve libertar?

É por isso que ponho tudo o mais de parte e apenas vou examinar o que, na opinião de Apuleio, os demónios têm de comum connosco, isto é, as paixões da alma. Se os quatro elementos são respectivamente povoados de seres animados — o fogo e o ar de seres imortais, a água e a terra de seres mortais — eu pergunto porque é que as almas dos demónios são agitadas por turbulentas tempestades de paixões. Apuleio quis chamar a estes seres «passivos quanto à alma», porque a palavra paixão (passio), deve designar o movimento da alma contrário à razão. Porque há então na alma dos demónios estes movimentos que se não verificam nos animais? Porque, se algo de análogo aparece nos brutos, não é uma perturbação, pois ela não é contra a razão de que os brutos carecem. Mas nos homens, se se produzem tais perturbações, é em consequência da estultí­cia e miséria: porque ainda não estamos na posse da perfeita sabedoria, fonte da felicidade que nos é para o fim prometida, quando estivermos libertos desta condição mortal. Quanto aos deuses, eles são, diz-se, isentos destas perturbações: são, não apenas eternos, mas também bem- -aventurados. Diz-se que realmente também eles são dotados de alma racional, mas absolutamente limpos de mancha e de contágio. Se, portanto, os deuses não estão sujeitos a perturbações porque são viventes felizes e não miseráveis; se os animais não se perturbam porque são viventes que não podem ser nem felizes nem miseráveis — só há que concluir que os demónios, tal como os homens, estão sujeitos às perturbações porque são viventes não felizes, mas miseráveis.

Que insensatez, ou melhor, que demência pode submeter-nos, por qualquer motivo religioso, aos demó­nios, quando pela verdadeira religião nos libertamos da perversidade que nos toma semelhantes a eles? Ao passo que, na verdade, os demónios estão sujeitos à cólera (e Apuleio confessa-o apesar de tão indulgente para com eles a ponto de os julgar dignos das honras divinas), a verdadeira religião prescreve-nos que não cedamos à cólera, mas, pelo contrário, que lhe resistamos;

ao passo que os demónios se deixam subornar com presentes — a verdadeira religião impõe-nos que a ninguém favoreçamos em paga dos presentes recebidos; ao passo que os demónios ficam lisonjeados com as honras — a verdadeira religião preceitua que de modo nenhum nos deixemos mover;

ao passo que os demónios odeiam certos homens e amam outros, não por um juízo reflectido e sereno mas, segundo o dito de Apuleio, por um movimento apaixonado da alma — a verdadeira religião ordena-nos que amemos os próprios inimigos;

em suma — todos estes movimentos do coração, todas estas agitações do espírito, todas estas turbulentas tempestades da alma que, segundo Apuleio inflamam e arrastam os demónios — a verdadeira religião impõe-nos que as dominemos. Que razão tens tu então Apuleio, a não ser a insensatez e o erro miserável, para te humilhares respeitosamente perante um ser ao qual não desejas ser semelhante na tua vida, para renderes um culto religioso a um ser que não quererás imitar, uma vez que imitar o que se adora constitui toda a religião?

CAPÍTULO XVIII

Que religião é essa que ensina aos homens que devem recorrer aos demónios para se recomendarem aos deuses bons?

É, pois, em vão que Apuleio, e os que como ele pensam, atribui aos demónios, colocando-os no ar, a meio caminho entre o céu etéreo e a terra (porque nenhum deus se mistura ao homem como afirmou, segundo dizem, Platão) a honra de levarem aos deuses as orações dos homens e trazerem daqueles a estes os favores pedidos. Aos que assim pensam, repugna que os homens se misturem com os deuses e os deuses com os homens, mas não lhes desagrada que os demónios se misturem com os deuses e com os homens para transmitirem a uns os pedidos e trazerem a outros os favores. Deste modo um homem casto e alheio às criminosas práticas da magia, para ser entendido pelos deuses servir-se-ia de protectores que gostam dessas práticas, quando precisamente é não as amando que se torna digno de que o atendam mais facilmente e com maior empenho. Realmente, os demónios gostam das torpes cenas que ao pudor desagradam; nos malefícios dos mágicos gostam das mil maneiras de enganar que a inocência detesta. Não poderão, portanto, nem o pudor nem a inocência, ao pretenderem dos deuses um favor, obtê-lo pelos seus méritos próprios sem a intervenção dos seus inimigos. Escusa de tentar justificar as ficções poéticas e os logros teatrais. Contra isto temos Platão, seu mestre e entre eles de tão grande autoridade, se o pudor humano tem de si tão mau conceito que não só ame as coisas torpes, mas até as tenha por agradáveis à divindade.

CAPÍTULO XIX

A magia, que se apoia na protecção dos espíritos malignos, é uma arte ímpia.

Não terei eu de citar, contra as artes mágicas, de que alguns bem infelizes e ímpios se chegam a gabar, o testemunho tão notório do público? Porque é que efectivamente são castigados tão pesadamente pela severidade das leis estas artes se são obra de deuses dignos de veneração? Acaso foram estabelecidas por cristãos estas leis que castigam as artes mágicas? Que outro sentido podem ter as palavras do altíssimo poeta senão que é indubitável que estes malefícios são perniciosos ao género humano:

Juro pelos deuses, por ti, querida irmã, e pela tua doce cabeça, que, contra vontade, estou envolvida nas artes mágicas [i]?
e ainda o que, noutra passagem, ele diz destas artes:

Vi transportar para outro lugar as plantas da seara [ii],
em que se alude a esta ciência funesta e criminosa que, diz-se, facultava os meios de transferir as colheitas de um campo para o outro? Não recorda Cícero que nas Doze Tábuas, o mais antigo Código dos Romanos, consta o castigo estabelecido contra quem pratica estas artes? E, final­mente, o próprio Apuleio, acaso foi perante juízes cristãos que ele foi acusado de magia? Com certeza que se ele considerasse divinas, piedosas, conformes às obras dos poderes divinos, estas práticas de que o acusavam, ele deveria não só confessá-las, mas até delas se gabar e, pelo contrário, incriminar essas leis que, em vez de as considerarem dignas de admiração e veneração, as proscreviam e as consideravam condenáveis.

Desta maneira — ou teria feito com que os juízes partilhassem da sua opinião, ou, no caso de eles continuarem demasiado apegados a leis injustas e o condenassem à morte por pregar e exaltar tais doutrinas, os demónios outorgar-lhe-iam uma recompensa digna da sua alma, já que não receara dar a própria vida pela divulgação das divinas obras. Foi assim que os nossos mártires, quando lhes imputavam, a título de crime, a religião cristã, na qual sabiam que encontrariam a salvação e a glória eterna, em vez de, renegando-a, preferirem escapar às penas temporais, preferiam antes confessá-la, proclamá-la e pregá-la, tudo suportando por ela com valentia e fidelidade e, por ela morrendo com piedosa serenidade, tomaram vergonhosas as leis que a proscreviam e fizeram com que as mudassem.

Aliás, resta-nos deste filósofo platónico, Apuleio, uma copiosíssima e eloquente dissertação em que ele repele, como sendo-lhe estranho, o crime de magia e procura mostrar-se inocente, negando actos que um inocente não pode cometer. Mas todos os prodígios dos mágicos que ele justificadamente considera condenáveis, só ao ensino e à actividade dos demónios são devidos. Ele que veja, portanto, porque é que acha que se devem honrar estes demónios ao afirmar que são indispensáveis para levarem as nossas preces até aos deuses, quando, afinal, o que devemos é evitar as suas obras se quisermos que as nossas orações cheguem até ao verdadeiro Deus.

Pergunto ainda: Que orações dos homens devem os demónios apresentar aos deuses — as mágicas ou as lícitas? Se são as mágicas, eles não as aceitam; se são as licitas, eles recusam tais intermediários. E se um pecador arrependido faz oração, sobretudo porque se entregou à magia — pode receber o perdão por intercessão daqueles por cuja instigação ou favor foi levado a cometer a culpa que deplora? Ou serão os demónios que, para obterem o perdão dos arrependidos, serão os primeiros a fazer penitência por os terem enganado? Ninguém jamais disse uma coisa destas dos demónios! Se assim fosse de modo nenhum se atreveriam a solicitar para si honras divinas os que desejam pela penitência chegar à graça do perdão: o primeiro caso (o de solicitarem honras divinas) seria detestável soberba; e o segundo (o de desejarem pela penitência o perdão) seria humildade digna de lástima.


  
(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Vergílio, Eneida, IV, 492-493.
[ii] Vergílio, Églog., VIII, 98.

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