05/02/2017

Tratado da vida de Cristo 146

Questão 51: Da sepultura de Cristo

Art. 2 — Se Cristo foi sepultado de modo conveniente.

O segundo discute-se assim. — Parece que Cristo não foi sepultado de modo conveniente.

1. — Pois, a sua sepultura lhe correspondia à morte. Ora, Cristo sofreu morte objectíssima, segundo a Escritura: Condenêmo-lo a uma morte a mais infame. Logo, parece inconveniente o ter sido dada a Cristo uma sepultura honrosa, pelo facto de ter sido enterrado por homens ricos, isto é, por José de Arimateia um decurião nobre, e por Nicodemos, senhor entre os judeus, como lemos no Evangelho.

2. Demais. — Com Cristo não devia ter-se dado nada que fosse exemplo de superfluidade. Ora, parece ter sido superfluidade que, para sepultá-lo, Nicodemos viesse trazendo uma composição de quase cem libras de mirra e de aloés; sobretudo que uma mulher foi embalsamar-lhe antecipadamente o corpo para a sepultura, segundo lemos no Evangelho. Logo, isso não se fez com Cristo, de maneira conveniente.

3. Demais. — Não pode estar uma coisa em dissonância consigo mesma. Ora, a sepultura de Cristo foi simples, de um lado, pois, José amortalhou-o num lençol asseado, como refere o Evangelho; não, porém com ouro ou gemas ou seda, como explica Jerónimo. Mas, de outro lado, parece que esse sepultamento foi faustoso, pois o sepultaram com aromas. Logo, parece que não foi conveniente o modo do sepultamento de Cristo.

4. Demais. — Tudo quanto está escrito, e, sobretudo de Cristo, para nosso ensino está escrito, no dizer do Apóstolo. Ora, certas coisas estão escritas no Evangelho sobre o sepultamento, que em nada parecem contribuir para o nosso ensino. Assim, que foi sepultado numa horta, num sepulcro que lhe não pertencia, que ainda não tinha servido e aberto numa rocha. Logo, foi inconveniente o modo do sepultamento de Cristo.

Mas, em contrário, a Escritura: E será glorioso o seu sepulcro.
 
O modo do sepultamento de Cristo prova-se que foi conveniente por três razões. - Primeiro, para confirmar a nossa fé na sua morte e ressurreição. - Segundo para celebrar a piedade dos que o sepultaram. E por isso diz Agostinho: O Evangelho celebra com razão os que, tirando-lhe o corpo da cruz, cuidaram em envolvê-lo e sepultá-lo diligente e honrosamente. Terceiro, para representar o mistério que envolve os que são sepultados com Cristo para morrer.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJECÇÃO. – Na morte, que Cristo sofreu, celebra-lhe a paciência e a constância; e tanto mais quanto mais abjecta foi essa morte. Ao passo que no seu honorífico sepultamento se considera a virtude de quem, contra a intenção dos que o mataram, mesmo depois de morto foi sepultado honorificamente; e se prefigura a devoção dos fieis, que haviam de servir a Cristo morto.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O dito do Evangelista, que o sepultam como costumam os judeus sepultar, adverte, conforme o explica Agostinho, que nesses deveres prestados aos mortos devem-se observar os costumes de cada povo. Ora, o costume do povo judeu era embalsamar o corpo do morto com vários aromas, para mais diuturnamente se conservar incorrupto. Por isso ele mesmo ainda diz, que em dados os casos semelhantes, não é o uso das coisas que é culpável, mas o deleite que nele se põe. E a seguir acrescenta: O que de ordinário é culposo, em relação às outras pessoas, é sinal de algo de grande quando se trata de uma pessoa divina ou de um profeta. Quanto à mirra e ao aloés, pela sua amargura, significam a penitência, pela qual conservamos a Cristo em nós sem a corrupção do pecado. E o odor dos aromas simboliza a boa fama.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A mirra e o aloés foram depositados no corpo de Cristo, para que fosse conservado imune da corrupção, o que era pois exigido por essa necessidade. E serve-nos de exemplo, que podemos licitamente usar de certas coisas preciosas, como remédio exigido pela necessidade de conservar o nosso corpo. Quanto ao envolvimento do corpo só tinha de certo modo por fim a conveniência da honestidade. E, em tais casos, devemos contentar-nos com a simplicidade. Mas, isso significa como adverte Jerónimo, que aquele envolveu a Jesus num lençol asseado, que o tomou com mente pura. Daí o dizer Beda: O costume da Igreja estabeleceu que o sacrifício do Altar fosse celebrado sobre uma toalha, não de seda nem de pano tingido, senão de linho puro, assim como o corpo do Senhor foi sepulto num lençol asseado.

RESPOSTA À QUARTA. — Cristo foi sepultado num jardim, para signi-ficar que pela sua morte e sepultamento somos livrados da morte em que incorremos pelo pecado de Adão cometido no Jardim do Paraíso. - E, depois, o Salvador foi sepultado num sepulcro que lhe não pertencia, porque, como diz Agostinho num Sermão, morreu pela salvação dos outros; ora, o sepulcro é o habitáculo da morte. E isso também pode nos fazer considerar a extrema pobreza que Cristo abraçou por nós. Pois, aquele que durante a vida não teve uma habitação, depois da morte foi ainda sepultado em sepulcro alheio, sendo, por estar nu coberto por José. Foi deposto num monumento novo, como adverte Jerónimo, afim de que, se outros mortos tivessem repousado no túmulo, não se dissesse, depois da sua ressurreição, que foi outro o ressuscitado. E também pode o sepulcro novo simbolizar o ventre virginal de Maria. E ainda nos dá a entender que pela sepultura de Cristo todos somos renovados, destruída a morte e a corrupção. - Foi encerrado num sepulcro aberto numa rocha, como explica Jerónimo, a fim de que, se fosse construído com pedras destacadas, não se pudesse dizer que lhe tiraram furtivamente o corpo por uma abertura, praticada nos fundamentos. Por isso, a grande pedra que lhe foi aposta mostra que o sepulcro não podia ser aberto senão com a cooperação de muitos. E também, se tivesse sido sepulto na terra poderiam dizer: Cavaram a terra e o furtaram, como ensina Agostinho. - A significação mística do corpo de Cristo é como diz Hilário, que os Apóstolos, para introduzirem Cristo no coração da rude gentilidade, tiveram de abri-lo, de certo modo, pelo esforço da doutrina, como se sulca um terreno novo e inculto, impermeável até então ao ingresso do temor de Deus. E como nada além de Cristo deve ter entrada em nosso coração, ao sepulcro se apôs uma pedra. - E, como diz Orígenes, não foi fortuitamente que se escreveu que José envolveu o corpo de Cristo num lençol asseado e o depôs num monumento que ainda não tinha servido e que lhe apôs uma grande pedra: porque tudo o respeitante ao corpo de Jesus é puro, novo e excepcionalmente grande.

Nota: Revisão da versão portuguesa por AMA.




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