07/03/2017

História verdadeira - O doente da cama 28 – O valor das palavras

Nota de AMA: Confesso que hesitei em publicar esta história porque alguma palavra ou expressão podem ser consideradas “fortes” e de difícil aceitação.
Mas, uma história – como esta – para ser verdadeira tem de corresponder aos factos, e, as palavras, têm valor que pelo que significam.
Como não tenho medo das palavras, mas nem de juízos de valor, decidi publicar.
Aqui fica.

……

A cama 28 da enfermaria do hospital onde passei a última semana estava ocupada por um homem de idade indefinida, mas, talvez, rondando os setenta anos. Um sujeito com aspecto rude, fechado num mutismo feroz, que comia com sofreguidão as refeições que lhe serviam até à última migalha.
No terceiro dia depois da minha cirurgia, ao fim tarde, um enfermeiro abeirou-se da sua cama e comunicou-lhe:

‘Amanhã, você, vai-se embora. Teve alta. Percebeu?’

O homem teve uma reacção extraordinária: disse apenas:

'Estou fodido!'

Fiquei a pensar naquilo até porque, pela noite fora o homem ia repetindo sem cessar:

Estou fodido?

Esta expressão era proferida com tal convicção que percebi que realmente vinha do fundo do seu íntimo mais recôndito como se o facto de ter “alta” no dia seguinte fosse uma catástrofe, algo terrível e sem remédio.
Na manhã seguinte, depois deter saído sem dar palavra a nenhum dos companheiros de enfermaria, chamei um enfermeiro e perguntei o que se passava.
Contou-me que o sujeito estava ali já há vinte dias tendo chegado num estado lastimoso e grave, tendo sido sujeito a uma cirurgia urgente à próstata e que se encontrava bem. Há muito que deveria ter tido “alta” mas tinham conseguido mantê-lo ali por mais umas semanas porque se tratava de um pobre homem, sem recursos, morando sozinho num casebre sem um mínimo de condições e que tinha sido trazido para o hospital por um amigo – miserável como ele – num triciclo destes com uma caixa aberta.
A Segurança Social tinha sido alertada e, só agora, parece, iriam acompanhar a situação.

Fiquei envergonhado, senti-me rasteiro e tão “pouca coisa”!
Transportado na caixa de um triciclo!
Lembrei-me:
Daquele outro que os companheiros desceram por um buraco aberto no telhado e colocaram aos pés de Jesus;
Da minha casa confortável onde nada me falta;
Das minhas Filhas, os meus Netos, os meus amigos que me telefonam, fazem companhia, se interessam por mim;
Do meu automóvel que me leva onde eu quero com conforto e segurança;

E senti-me ainda mais rasteiro e “tão pouca coisa”, porque aquele homem era – é – um filho de Deus como eu só que mais genuíno, sincero, sem sonhos nem ambições e estava dramaticamente fodido, porque iam acabar a cama confortável do hospital, a assistência da enfermagem, as refeições quentes.

Para ele, aquele “grito da alma”: ‘estou fodido’, significava o fim de um sonho, de um intervalo de um mês na sua vida miserável, um grito que significava: acabou-se!

Esta história – verdadeira, repito – termina com a chegada, umas horas mais tarde, do tal amigo que o vinha buscar ao hospital no triciclo e que quando lhe disseram que o outro já se tinha ido embora saiu a correr para tentar encontra-lo. O triciclo estava à porta do hospital para os levar de volta para a vida real, concreta, que ambos conheciam bem.

O amigo não falhara, não faltara ao seu amigo!

Aquela palavra – que talvez nos choque porque somos bem-educados, correctos, impecáveis – tem um peso de toneladas de miséria e uma dimensão de hectares de cicatrizes, marcas e sinais de uma vida difícil, sempre no limite da sobrevivência.

Não… nós não a utilizamos porque preferimos lamentar-nos porque nos falta qualquer coisa, ou não recebemos aquele telefonema, ou pura e simplesmente estamos fartos, cansados, impacientes com a “maçada” da cirurgia, do hospital, da recuperação que deveria ser instantânea, imediata, sem dores nem incómodos.

Passado algum tempo, senti-me melhor porque me atrevi a pensar que, pelo menos uma vez na sua vida, aquele homem da cama 28, tivera alguém que rezou por ele e deu graças por lhe ter dado a oportunidade de reconhecer o OUTRO, o IRMÂO, o PRÓXIMO.

AMA, reflexões, 06.03.2017




1 comentário:

  1. Sem palavras, porque não são precisas!

    Mas baixo a cabeça, envergonhado, por tantas vezes que não tive um triciclo para o meu irmão que precisava de mim.

    Um abraço

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