31/03/2017

Leitura espiritual

A Cidade Deus
A CIDADE DE DEUS


Vol. 2

LIVRO XI

CAPÍTULO X

Trindade simples e imutável de Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo que são um só Deus, em quem as qualidades outra coisa não são que a substância.

Não há, pois, senão um bem simples e, consequentemente, senão um bem imutável — Deus. E este bem criou todos os bens que, não sendo simples, são, portanto, mutáveis. Digo, precisamente, criou, isto é, fez, e não gerou. É que o que é gerado de um ser simples é simples como ele e é o mesmo que aquele que o gerou. A estes dois seres chamamos Pai e Filho e um e outro com o seu Santo Espírito são um só Deus. A este Espírito do Pai e do Filho se chama nas Sagradas Escrituras Espírito Santo por uma espécie de apropriação deste nome. E, porém, distinto do Pai e do Filho, pois não é nem o Pai nem o Filho. Disse que é distinto mas não outra coisa, porque também Ele é igualmente simples, igualmente imutável e coeterno. E esta Trindade é um só Deus e não deixa de ser simples por ser Trindade. Não dizemos que esta natureza do bem é simples porque nela está só o Pai, só o Filho, só o EspíritoSanto; ou ainda porque a Trindade é apenas um ser sem nenhuma subsistência de Pessoas, com o julgaram os herejes sabelianos
[i];

mas chama-se simples porque o que ela tem isso é salvo que cada pessoa se diz pessoa em relação a cada um a das outras duas. Pois, com certeza que o Pai tem um Filho, mas não é o Filho; o Filho tem um Pai, mas não é o Pai. Assim, pois, considerado em si mesmo e não em relação com o outro, Deus é o que tem: com o se diz vivo em relação a si mesmo porque tem evidentemente a vida e essa vida é Ele próprio.

É por isso que se chama simples a natureza que nada tem que possa perder; ou é simples a natureza em que aquele que tem se identifica com aquilo que tem. Assim, o vaso tem o licor, o corpo a cor, o ar a luz ou o calor, a alma a sabedoria. Mas nenhum a destas coisas é o que tem. Nem o vaso é o licor, nem o corpo é a cor, nem o ar é a luz ou o calor, nem a alma é a sabedoria. Por conseguinte, podemser privados das coisas que têm: podem mudar e podem transformar-se em outras disposições ou qualidades: o vaso pode ficar vazio do líquido de que estava cheio, o corpo pode perder a cor, o ar pode escurecer ou arrefecer, a alma pode tresloucar-se. Embora o corpo seja, após a ressurreição, incorruptível, com o foi prometido aos santos,mantendo, na verdade, a qualidade duma inamissível incorruptibilidade — o certo é que, mantendo-se a substância corporal, o corpo e a incorruptibilidade não são a mesma coisa.

Na realidade, a incorruptibilidade está toda em cada uma das partes do corpo — nem maior aqui, nem menor ali —, porque nenhum a parte é mais incorruptível do que a outra. Na verdade, o corpo é maior no todo do que a parte; e se um a parte é maior e a outra é menor, nem por isso a maior é mais incorruptível. Um a coisa é o corpo que, em si, não está todo inteiro em qualquer das suas partes, outra coisa a incorruptibilidade que em qualquer das partes está inteiram ente. Porque toda a parte incorruptível do corpo, ainda que desigual às demais, eigualmente incorruptível. O dedo, por exemplo, é mais pequeno do que a mão toda. Todavia, a mão não é mais incorruptível do que o dedo. Embora sejam desiguais a mão e o dedo, é, todavia, igual a incorruptibilidade da mão e do dedo. Por isso, em bora a incorruptibilidade seja inseparável de um corpo incorruptível, uma coisa é a substância que o faz chamar corpo, outra é a qualidade que o faz chamar incorruptível. E, por isso, mesmo nesse estado, ele não é o que tem.

A própria alma, mesmo que fosse sempre sábia — como quando for libertada para a eternidade — será sábia pela participação da imutável sabedoria que não é ela pró­pria. Pelo facto de, na realidade, o ar se não ver quando privado da luz que o penetra, nem por isso se poderá negar que um a coisa é o ar e outra a luz que o ilumina. Com isto não pretendo dizer que a alma é um a espécie de ar, como pretenderam alguns, incapazes de conceber uma natureza incorpórea. A alma e o ar, todavia, apesar da sua grande diferença, têm uma certa semelhança e é permitido dizer que a alma incopórea é iluminada pela luz incorpórea da Sabedoria simples de Deus, como o ar corporal é iluminado pela luz corporal. E como o ar privado da luz escurece (porque o que chamamos trevas, seja em que lugar corporal for, nada mais é do que o ar privado de luz), assim obscurece a alma privada da luz da Sabedoria.

Portanto, nesta ordem de ideias, chamam-se simples as perfeições que, por excelência e na verdade, constituem a natureza divina: porque nelas não é a substância uma coisa e a qualidade outra coisa — nem é pela participação em qualquer outra coisa que elas são a divindade, a sabedoria ou a beatitude. É certo que nas Sagradas Escrituras se diz múltiplo o Espírito de Sabedoria — mas isso é porque Ele encerra em si muitas coisas: mas Ele é o que tem e tudo o que tem é apenas Ele. A Sabedoria não é múltipla, mas una, e nela existem tesouros infinitos — para ela finitos — de coisas inteligíveis contendo todas as razões invisíveis e imutáveis dos seres, mesmo visíveis e mutáveis que por ela foram feitos. Porque Deus nada fez sem disso Se aperceber — o que, na verdade, de nenhum artífice hum ano se pode dizer. Mas se tudo fez conscientemente Ele não fez, evidentemente, senão o que já antes tinha conhecido. Daí ocorrer ao nosso espírito algo de maravilhoso, mas realmente verdadeiro: para nós este Mundo não poderia ser conhecido se não existisse — mas para Deus, se não fosse conhecido, não poderia existir.

CAPÍTULO XI

Deveremos acreditar que mesmo os espíritos que se não mantiveram na verdade participaram da beatitude de que sempre gozaram os santos anjos desde o começo da sua existência?

Sendo isto assim, os espíritos a que chamam os anjos de maneira nenhum a começaram por ser durante certo tempo espíritos das trevas, mas, no momento em que foram feitos, foram feitos luz. Não foram criados simplesmente para existir e viver de qualquer maneira, mas foram iluminados para viver na sabedoria e na felicidade. Alguns destes anjos que se desviaram desta iluminação não obtiveram a excelência dessa vida sábia e feliz que, sem sombra de dúvida, só poderia ser eterna com a perfeita garantia da sua eternidade. Mas possuem a vida racional, embora insensata, e de tal forma que não a podem perder mesmo que o quisessem. Mas quem poderá definir com o foram participantes dessa sabedoria antes de terem pecado? Como é que poderem os dizer que nessa participação foram iguais aos que são verdadeira e plenamente felizes precisamente porque não se enganaram acerca da eternidade da sua felicidade? Realmente, se tivessem tido essa igualdade de felicidade, permaneceriam também na sua eterna posse, igualmente felizes porque igualmente certos. E que, na verdade, a vida, por mais longa que seja, não se poderá chamar eterna se tiver que ter um fim. Com efeito, a vida tem este nome apenas por se viver e chama-se eterna por não ter fim. Não há dúvida de que o que é eterno não é, só por isso, feliz (também o fogo do castigo se chama eterno). Todavia, a vida perfeita e verdadeiramente feliz só pode ser eterna. De facto, tal não era a dos anjos maus pois que, destinada a cessar, não era eterna, quer eles o soubessem quer o ignorassem e supusessem outra coisa. Porque o temor — se o soubessem — ou o erro — se o ignorassem — impedia-os, com certeza, de serem felizes. E se isto ignoravam de forma que não confiavam nem no falso nem no certo, mas não podiam dar o seu assentimento acerca da eternidade ou temporalidade desse seu bem, a própria hesitação acerca de felicidade tão grande não admitia a plenitude da vida feliz que cremos existir nos santos anjos. Não é que nós restrinjamos o significado de vida feliz ao ponto de dizermos que só Deus é feliz; Ele é, de certo, verdadeiramente feliz ao ponto de ser impossível conceber felicidade maior. E em comparação desta felicidade, a dos anjos tem toda a elevação e toda a grandeza que lhes convém, mas — em que consiste ela (quid est) e qual é a sua medida (quantum est)?

(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i][i] Segundo os Sabelianos, as três pessoas da SS. Trindade mais não eram que aspectos diferentes de um ser uno — Deus — ou nomes diferentes a este dados, conforme o ponto de vista por que era encarado. A igreja, porém, ensina que as três pessoas são subsistentes sem deixarem de ser consubstanciais.

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