25/04/2017

Leitura espiritual

A Cidade Deus
A CIDADE DE DEUS 

Vol. 2


LIVRO XII

CAPÍTULO VIII

Do amor pervertido pelo qual a vontade se afasta do bem imutável para se unir ao bem mutável.

O que eu sei é que a natureza de Deus nunca, em parte nenhuma e de modo nenhum pode falhar, ao passo que podem falhar as naturezas feitas a partir do nada. Mas quanto mais essas naturezas são e fazem o bem (é então que fazem alguma coisa) tanto mais têm elas causas eficientes. E na medida em que falham e por isso fazem o mal (que fazem então senão o nada?) têm elas causas deficientes. Sei também que, no ser em que se produz uma vontade má, isso não aconteceria se ele não quisesse. As suas faltas são, portanto, voluntárias e não necessárias, e por isso é que são seguidas de um justo castigo. De facto, afasta-se — não para o mal em si, mas de maneira má, isto é, não se inclina para naturezas más, mas inclina-se mal por, contra a ordem da natureza, se separar do Ser Supremo para seres inferiores. Assim:

a avareza não é vício do ouro, mas do homem que ama perversamente o ouro, pondo de parte a justiça que devia ser posta muito acima do ouro;

a luxúria também não é um vício dos corpos belos e graciosos, mas de um a alma que ama de forma pervertida as volúpias corporais, descuidando a temperança que nos dispõe para as realidades mais belas do espírito e para maiores graças incorruptíveis;

não é a jactância um vício do louvor humano, mas da alma que perversamente gosta de ser louvada pelos homens com desprezo do testemunho da consciência; nem a soberba é o vício de quem outorga o poder ou do próprio poder, mas o da alma que ama perversamente a sua própria autoridade e despreza a autoridade justa de um mais poderoso. E por isso que quem ama perversamente um bem, seja ele de que natureza for, mesmo que o obtenha, torna-se mau nesse bem e miserável pela privação de um bem melhor.

CAPÍTULO IX

O criador da natureza dos santos anjos é também o autor da sua vontade boa por meio da graça neles difundida pelo Espírito Santo.

Como não existe, portanto, na vontade má, uma causa eficiente natural, ou, se assim se pode dizer, essencial, (é, realmente, por ela que o mal dos espíritos mutá­veis começa; este mal é que diminui ou corrompe o bem da natureza; uma tal vontade não resulta senão de uma defecção pela qual se abandona Deus; também a causa desta defecção é em si um a defecção) se dissermos que também não há nenhuma causa eficiente da vontade boa dos anjos, temos que ter cuidado não se vá pensar que a vontade boa dos anjos não foi criada mas é coeterna com Deus. Como, porém, também eles foram criados — como pretender que a sua vontade é incriada? Mas, já que foi criada — foi-o com eles ou primeiro foram eles criados, mas sem ela? Mas, se foi criada com eles, é fora de dúvida de que o seu Autor e o dos anjos é o mesmo — e o mesmo instante em que foram criados ligaram-se eles a quem os criou com o mesmo amor com que foram criados. Os maus estão separados da sua companhia precisamente porque, ao passo que os bons permaneceram nessa vontade boa, eles, os maus, mudaram, ao nela se não manterem, e se afastaram dessa companhia devido à má vontade que neles apareceu graças à sua defecção — defecção esta que, por sua vez, não se verificaria, se eles a não tivessem querido.

Mas, se os anjos bons começaram por existir sem vontade boa e se foram eles próprios que em si a produziram sem a acção de Deus — tornaram-se então melhores do que tinham por Ele sido feitos? Nada disso! Efectivamente, sem vontade boa que mais seriam senão maus? Ou, se não eram maus, pois não tinham vontade má (com efeito não se tinham separado duma vontade boa que ainda não tinham começado a ter) com certeza que então nem eram maus, nem tão pouco eram bons senão quando começaram a ter vontade boa. Mas não puderam fazer-se a si próprios melhores do que os tinha feito Aquele que melhor que ninguém tudo fez. Por isso, a boa vontade, pela qual se tornariam melhores, — não a poderiam eles ter sem a ajuda efectiva do Criador. Aliás, a sua vontade boa teve por efeito voltá-los, não para si próprios, que tinham menos ser, mas para o Ser Supremo. Unindo-os a Este, conferiu-lhes ela mais ser, para os fazer viver com sabedoria e beatitude na sua participação. Por muito boa que fosse, a sua vontade permaneceria pobre e entregue ao puro desejo, se Aquele que tinha feito, a partir do nada, uma natureza boa, capaz de o possuir, não a tivesse feito melhor enchendo-a de si próprio depois de a levar a tornar-se mais intensamente desejosa d’Ele.

Há outra questão a discutir. Se os anjos bons são autores da sua própria vontade boa — fizeram-na com alguma vontade ou com nenhuma? Se com nenhuma — evidentemente que nada fizeram; se com alguma — era esta boa ou má? Se era má — com pode uma vontade má ser causa de uma vontade boa? Se era boa — então já a tinham. E esta — quem é que a tinha criado senão Aquele que os criou com um a vontade boa, isto é, com um amor casto pelo qual eles se unem a Quem simultaneamente cria a sua natureza e os enriquece com a sua graça? Daí termos de acreditar que os santos anjos nunca existiram sem vontade boa, isto é, sem o amor de Deus.

Mas os que, embora criados bons, são agora maus (por sua má vontade própria, que não é devida à sua natureza boa, mas à sua falta espontânea relativamente ao bem: a causa do mal não é o bem, mas a falta de bem).— esses

ou receberam a graça do divino amor num grau menor que o daqueles que nela perseveraram,

ou então, embora criados todos igualmente bons, uns caíram por má vontade, e os outros, tendo recebido maiores auxílios, chegaram à plenitude da felicidade com a garantia definitiva de jamais caírem, como já expus no livro anterior.

É preciso reconhecer, em justo louvor do Criador, que não é apenas dos homens santos, mas também dos santos anjos que se pode dizer que a caridade de Deus se difundiu neles pelo Espírito Santo que lhes foi dado. Nem é somente do bem dos homens, mas primeira e principalmente do dos anjos que foi escrito:

Para mim o bem é estar unido a Deus.[i]

Os que gozam em comum deste bem constituem entre si e com Aquele a que estão unidos um a santa sociedade e formam a única cidade de Deus que é, ela própria, o seu sacrifício vivo e o seu templo. Mas é tempo, bem o vejo, de contar, com o já o fiz para louvar os anjos, como nasceu do mesmo Deus Criador a parte desta cidade destinada a reunir-se um dia aos anjos imortais, a qual é constituída por homens mortais e peregrinos agora por esta terra de maneira inconstante ou, naqueles que já morreram, repousa nas moradas secretas em que habitam as almas. Efectivamente, foi de um só homem, o primeiro a ser criado por Deus, que começou o género humano, como o testemunham as Sagradas Escrituras que, com toda a razão, gozam de admirável autoridade no mundo inteiro: foram essas Escrituras que, sob a acção divina, entre outras coisas que já se verificaram, predisseram que nelas viriam a acreditar todos os povos.



(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Salmo LXXII, 28.

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