27/04/2017

Leitura espiritual

A Cidade Deus
A CIDADE DE DEUS 


Vol. 2

LIVRO XII

CAPÍTULO XIII

Resposta aos que acusam a criação do homem por ter chegado tão tarde.

Quando foi tratada a questão da origem do Mundo, respondemos aos que se recusam a crer que o Mundo começou e não existiu sempre, como o próprio Platão expressamente confessa, embora alguns lhe atribuam opinião contrária ao que deixou dito. Esta mesma será a resposta, a propósito da primeira criação do homem, aos que perguntam porque é que o homem não foi criado desde tempos inumeráveis e sem fim do passado, mas tão tarde que, segundo a Escritura, nós contamos menos de seis mil anos desde que o homem começou a existir. Se os impressiona a brevidade do tempo que lhes parece feito de tão poucos anos desde que o homem apareceu, como se lê nos nossos autorizados escritores, — pois fiquem a saber que nada que tem um termo é de tão longa duração. Comparados a uma eternidade sem fim todos os períodos de séculos que têm um termo devem ser tidos, não por exíguos, mas por nada. Se, portanto, desde que o homem foi feito por Deus, decorreram, não digo cinco ou seis mil anos, mas sessenta ou seiscentos mil, ou sessenta ou seiscentas vezes mais, ou seiscentas mil vezes mais, ou multiplicarmos estas· quantidades por si mesmas até não haver algarismos para exprimir tais quantidades — ainda se poderá perguntar da mesma forma porque é que Deus o não fez mais cedo! Comparemos a abstenção divina anterior à criação do homem na sua duração eterna e sem começo, a uma soma de períodos de tempo por maior e inexprimível que seja, mas encerrada nos limites de um a determinada duração e, portanto, finita, — esta soma nem sequer representa a mais pequena gota de água de todo o mar que o Oceano abarca; porque estas duas coisas — uma tão pequenina e a outra tão desmesuradamente grande — são ambos finitas. Mas este período de tempo, por mais longo que seja, que parte de um começo e pára num termo, comparado ao que não tem começo, já não sei se devemos tê-lo por mínimo ou se tê-lo antes mesmo por nulo. Se, efectivamente, deste período, a partir do seu termo, se subtraírem momentos extremamente pequenos, o seu número, tão grande que já nem é exprimível, descerá, todavia; e subindo (como se a partir do dia actual de um homem descontasses os seus dias subindo até ao seu nascimento), a subtracção conduziria finalmente ao princípio do período. Mas se duma duração que não teve começo se retirarem do passado, não digo instantes, nem um a um, horas, dias, meses ou anos em grandes quantidades, mas períodos de tempo tão longos que não seja possível a um especialista em cálculo medi-los em anos, — mesmo que, na realidade, estes se esgotassem por subtracção de momentos, de instante em instante, — e se lhe retirarem estes tão grandes períodos de tempo, não um a ou duas vezes nem frequentem ente mas constantemente, — que acontece? Que é que se consegue? Nunca se chega ao começo, que começo não há.

É por isso que as questões que agora formulamos poderão os nossos descendentes voltar a formulá-las com a mesma curiosidade após seiscentos mil anos se até lá se prolongar esta raça mortal que vai nascendo e morrendo e se até então continuar a sua ignorância e debilidade. E os que, antes de nós, viveram em tempos próximos da criação do homem, poderiam ter levantado a mesma questão. Enfim, no dia seguinte ao do próprio dia da sua criação, até o primeiro homem poderia ter perguntado porque é que não fora criado mais cedo. E qualquer que fosse, nos tempos anteriores, a data da sua criação, este problema do começo dos seres temporais não teria encontrado entãoimportância diferente da de agora ou da de mais tarde.

CAPÍTULO XIV

O retorno dos séculos: alguns filósofos julgaram que, depois de completarem um determinado ciclo de séculos, as coisas voltariam a existir na mesma ordem e da mesma forma.

Alguns filósofos deste Mundo, para resolverem este problema, julgaram que não havia outra possibilidade de solução senão a de admitirem períodos cíclicos de tempo dentro dos quais a natureza seria constantemente renovada e repetida em todos os seus seres. Assim se sucederiam sem paragem os movimentos periódicos dos séculos que vêm e vão, — quer estas revoluções se cumpram num Mundo permanente quer, em certas épocas, um Mundo que morre e que renasce apresente, sem cessar, como novos, os mesmos seres passados e futuros. Deste jogo burlesco não pode escapar a alma imortal, mesmo que tenha alcançado já a sabedoria: sem parar encaminhar-se-ia para uma falsa beatitude e, sem parar, voltaria a uma autêntica miséria. Como é que seria autêntica esta felicidade se a sua perenidade não é segura? É que

ou a alma desconhece a sua miséria futura — e nesse caso vive numa lastimosa ignorância no meio da verdade, ou, se a acontece, vive roída de temor no meio da felicidade. Mas se ela nunca mais voltar à desgraça e caminhar para a beatitude — é porque aconteceu no tempo algo de novo que não acabará no tempo. Porque é que não há-de ser assim o Mundo? E porque não será assim também o homem criado no Mundo? Tomando o recto caminho da sã doutrina evitar-se-iam todos estes rodeios de não sei que falsos ciclos concebidos por falsos sábios enganosos.

Há os que invocam esta passagem de Salomão no livro chamado Eclesiastes:

Que é que ele foi? O mesmo que há-de ser. E que é que aconteceu? O mesmo que há-de acontecer. Não há nada de novo sob o sol. Quem falará, quem dirá aqui está uma coisa nova? Ela já existiu nos séculos que nos precederam.[i]

Segundo aqueles, tratar-se-ia desses ciclos que reconduzem todos os seres aos mesmos estados. Isto disse-o ele ou das coisas que vem referindo mais acima, isto é, das gerações que apareceram e desapareceram, dos cursos do Sol, da queda das torrentes, ou então, com certeza, de todas as espécies de seres que nascem e morrem. Efectivamente, houve homens antes de nós, há-os connosco e homens haverá depois de nós. Da mesma forma quanto aos animais e plantas. Até os próprios monstros, que raramente nascem, embora difiram entre si e alguns, segundo se diz, sejam únicos. Todavia, esses seres estranhos e monstruosos, como tais sempre existiram e sempre existirão: um monstro sob o Sol não é, pois, coisa recente e nova que nasça. Outros interpretam estas palavras assim: o que aquele sábio quis dizer foi que tudo já aconteceu na predestinação de Deus — e, portanto, nada de novo haveria sob o Sol.

Está, porém, longe da nossa recta fé acreditar que Salomão quis significar com tais palavras os famosos ciclos de acordo com os quais o tempo e as coisas temporais se repetiriam com o um eterno rodopio. Assim, na escola da Academia de Atenas, o filósofo Platão ensinou no seu século discípulos; da mesma forma nos inumeráveis séculos do passado, com intervalos muito afastados, mas bem definidos, na mesma cidade, na mesma escola, o mesmo Platão teria tido os mesmos discípulos e voltaria a encontra-los no decurso de inúmeros, séculos do futuro. Longe de nós, eu vo-lo digo, acreditar em tais coisas. Cristo morreu uma só vez pelos nossos pecados

mas, tendo ressuscitado dos mortos, não morrerá mais e a
morte não voltará a dominá-lo.
[ii]

E nós, depois da ressurreição, estarem os eternamente com o Senhor a quem agora dirigimos as palavras que o Salmo Sagrado sugere:

Tu, Senhor, nos conservarás, tu nos guardarás desde
esta geração até à eternidade.
[iii]

Mas parece-me que convém aos outros o que se segue:

os ímpios andarão às voltas.[iv]

Não é que a sua vida tenha de girar nos círculos da sua invenção — mas que Tal é o caminho do seu erro, isto é, a sua falsa doutrina.


(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Ecles., I, 9-10.
[ii] Rom., VI, 9.
[iii] Salmo XI, 8.
[iv] Salmo XI, 9.

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