15/05/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS

Vol. 2

LIVRO XIII

CAPÍTULO XXIV

…/3

Mas por sopro de Deus, dizem, entende-se o que sai da boca de Deus e, se o tomam os pela alma, segue-se que esta forma um a só e mesma substância com aquela sabedoria que diz:

Eu saí da boca do Altíssimo.[i]

Na verdade, a sabedoria não diz que é um sopro de Deus, mas que saiu da sua boca. Assim como nós podemos, quando sopramos, expelir um sopro sem o formarmos da nossa natureza de homens, mas recebendo pela inspiração e expelindo pela expiração o ar que nos envolve, — assim também Deus omnipotente pode emitir um sopro, tirado, não da sua natureza nem de uma criatura existente, mas de nada, e fazê-lo passar para o corpo do homem , inspirando-o nele ou, com o muito bem foi dito pela Escritura, insuflando-o — sopro incorpóreo emitido pelo Incorpóreo, mas mutável vindo do Imutável porque é criatura que vem do Criador. Todavia, para que os que querem falar da Escritura sem terem em conta a sua m aneira de dizer aprendam que ela não faz sair da boca de Deus apenas o que é uma mesma natureza com ele, que leiam ou ouçam a palavra escrita de Deus:

Porque és momo, nem quente nem frio, vou lançar-te
da minha boca.
[ii]

Nenhum motivo há, portanto, para resistirmos ao Apóstolo que tão claramente fala quando, ao distinguir o corpo espiritual do corpo animal — aquele que nós teremos mais tarde e o que hoje temos —, diz:

Semeia-se um corpo animal ressuscita um corpo espiritual; se há um corpo animal, também há um corpo espiritual; está assim escrito: o primeiro homem, Adão, foi feito em alma vivente. O último Adão em espírito vivificante.

Mas, o primeiro não foi o espiritual, mas o animal; depois é que vem o que é espiritual.

O primeiro homem, saído da terra, é terrestre, o segundo é do céu. Tal como é o terrestre, assim são também os terrestres; e assim como é o celeste, assim também são os celestes. E assim como nos revestimos da imagem do terrestre, revistamo-nos também da imagem d’Aquele que é do céu.[iii]

Já acima falámos de todas estas palavras do Apóstolo.

Portanto, o corpo animal — em que diz o Apóstolo ter sido feito Adão, o primeiro homem — foi criado em tal estado que, não estando de todo isento da morte, de facto não viria a morrer se não pecasse: é que aquele que o espírito vivificante tom ar espiritual e imortal — esse ficará de todo livre da morte. Da mesma forma a alma foi criada imortal e — embora morta pelo pecado que a priva de uma certa vida, isto é, da vida do Espírito de Deus com a qual podia viver na sabedoria e na beatitude — conserva, todavia, a sua vida própria, miserável embora, porque foi criada imortal. Da mesma forma, ainda, também os anjos desertores: embora sob certo aspecto estejam mortos porque, ao pecarem, abandonaram a fonte da vida que é Deus, se tivessem bebido dessa fonte teriam podido viver na sabedoria e na beatitude, — todavia, não puderam morrer, no sentido de que não deixaram de viver e de sentir, porque foram criados imortais. E assim, depois do juízo final, serão precipitados na segunda morte, sem que nem lá cesse a vida, pois, quando estiverem nos tormentos, não deixarão também de sentir. Mas os homens que pertencem à graça de Deus, concidadãos dos santos anjos que se mantêm na vida bem-aventurada, de tal forma serão revestidos de corpos espirituais que não mais pecarão nem morrerão; e a imortalidade de que serão revestidos, como a dos anjos, não poderá ser-lhes arrebatada pelo pecado. Permanece a natureza da carne, é certo, mas sem resquícios de corruptibilidade nem de entorpecimento carnal.

Segue-se, porém, uma questão que, com a ajuda do Senhor Deus da verdade, tem que ser tratada e resolvida. Se a paixão dos membros desobedientes nasceu nos primeiros homens do pecado de desobediência, quando a graça divina os abandonou;

se, em seguida, abriram os olhos para a sua nudez, isto é, repararam nela com mais curiosidade;

se, por causa do impudico movimento que resistia à liberdade da vontade, taparam as regiões pudendas:

— como é que teriam gerado filhos se se mantivessem sem pecado tal como tinham sido criados?

Mas porque é preciso fechar este livro e porque tamanha questão não pode ser tratada em poucas palavras, será mais conveniente deixar o seu exame para o livro que Se segue.


(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Ecles., XXIV, 5.
[ii] Apoc., III, 16.
[iii] I Corint., XV, 44-50.

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