03/05/2017

Leitura espiritual

A CIDADE DE DEUS 

Vol. 2

CAPÍTULO XXVI

Toda a natureza e toda a forma no Universo criado é obra exclusiva de Deus.

Efectivamente, há a forma de que se reveste exteriormente a matéria corpórea — como fazem os oleiros, os artífices e os operários que pintam e esculpem figuras que reproduzem corpos animados. Mas há outra forma cuja eficiência causal é interior, provém da secreta e misteriosa vontade de um a natureza viva e inteligente que, sem ser feita, produz as formas naturais dos corpos e as próprias almas dos vivos.

A primeira forma — a exterior — está ao alcance de qualquer artífice. Mas a outra só se pode atribuir a um artífice, ao Deus Criador que fez o Mundo e os anjos sem ter necessidade nem de outros anjos nem de outro Mundo.

Foi, de facto, desta virtude divina e por assim dizer efectiva, que tudo fez sem ser feita, que o Céu e o Sol receberam a sua rotundidade quando foi criado o Mundo; foi a esta mesma virtude divina e efectiva, que tudo fez sem ser feita, que o olho como o pomo devem a sua forma redonda;

dela provêm todas as outras formas naturais que vemos formar-se em tudo quanto nasce, não sob uma acção exterior, mas pelo poder íntimo do criador que disse:

Eu encho o céu e a terra,
[i]


e cuja sabedoria é

a que atinge duma extremidade à outra com força e tudo dispõe com suavidade. [ii]

Na realidade, não sei que espécie de serviços prestaram os anjos — os primeiros a serem feitos — ao Criador ao fazer os outros seres. Nem me atrevo a atribuir-lhes um poder que eles talvez não tenham. Nem devo negar-lhes o poder que têm. Reservo, porém , para Deus a formação de todas as naturezas e a obra da criação, pela qual obra elas se tornaram plenamente no que são — embora nela colaborem também os anjos conscientes e gratos por também a Ele deverem o ser.

De facto, não dizemos que os agricultores são os criadores dos frutos quando lemos:

Nem o que planta é coisa alguma, nem o que rega mas sim o que faz crescer: Deus,
[iii]

mas nem da própria terra o dizemos, apesar de parecer a mãe universal e fecunda que promove a eclosão dos gérmenes e fixa as raízes ao solo; lemos ainda:

Deus dá-lhe o corpo que lhe apraz e a cada uma das
sementes o corpo que lhe é próprio.
[iv]

Também não devemos chamar à mulher criadora da sua descendência: Criador é antes Aquele que disse a um dos seus servos:

Antes de te formar no útero, eu te conheci.
[v]

E embora os diversos estados de alma de um a mulher grá­vida possam afectar o feto de certas disposições — como Jacob com varas estriadas obtinha dos seus gados crias de cores diferentes —, todavia, dessa natureza gerada a mãe é tão impropriam ente criadora como de si própria. Quaisquer que sejam as causas corpóreas ou seminais que actuam na geração graças ao concurso dos anjos, dos homens, de quaisquer seres vivos, ou pela união de marido e mulher;

qualquer que seja o poder exercido pelos desejos ou emoções da alma materna, para marcar com certos traços ou com certas cores o débil e tenro fruto da concepção,

— essas próprias naturezas, susceptíveis de serem impressionadas, conforme o seu género, desta ou daquela maneira, são obra exclusiva de Deus Supremo. O seu segredo pode penetrar o Universo com a sua incorruptível presença, fazendo com que exista tudo o que de qualquer maneira é, na medida em que é. Porque sem a acção de Deus, este ser não seria este ou aquele, nem sequer poderia ser.

E por isso, portanto, que não atribuímos a fundação de Roma ou de Alexandria nem aos pedreiros nem aos arquitectos (embora tenham sido os artífices que imprimiram às coisas corporais as suas formas exteriores) mas sim aos reis por cuja vontade, decisão e ordens elas foram construídas. Dizemos que uma foi fundada por Rómulo e a outra por Alexandre. Por maioria de razão devemos dizer que só Deus é o autor das naturezas,

Ele que nada produz de uma matéria que Ele próprio não tenha produzido;

Ele que não tem outros obreiros que não sejam os obreiros que criou;

e, se retirasse das suas obras o seu poder, a que chamarei «fabricador», elas entrariam no nada onde estavam antes de terem sido feitas. Digo «antes», não na ordem do tempo, mas na da eternidade. Quem é, na realidade, o criador dos tempos senão Aquele que fez seres cujos movimentos faziam correr os tempos?

CAPÍTULO XXVII

Opinião dos platónicos: os anjos foram, na realidade, criados por Deus, mas são eles os criadores dos corpos humanos.

Platão atribui a criação dos outros seres animados aos deuses inferiores, feitos, por sua vez, pelo Deus Supremo. Todavia, d’Este recebem a parte imortal à qual aqueles acrescentam a parte mortal. Não quis fazê-los criadores das nossas almas, mas dos nossos corpos. Pois bem — segundo Porfírio — a alma para se purificar deve evitar todo o corpo. Pensa, como o seu Platão e os outros platónicos, que aqueles que viveram nos excessos e na luxúria devem, para expiar as suas faltas, voltar a corpos mortais, mesmo de animais — diz Platão — ou só de homens — diz Porfírio. Daí a consequência: estes deuses, que eles pretendem que adoremos como nossos pais e criadores, mais não são que autores dos nossos grilhões ou das nossas prisões. Longe de serem nossos criadores, são nossos carcereiros que nos carregam de pesadas cadeias e nos encerram em dolorosos ergástulos. Deixem -se, pois, os platónicos de apresentar os corpos com o um castigo com que ameaçam as almas, ou então não exaltem o culto desses deuses que nos exortam a fugir e a evitar com todas as nossas forças o corpo que eles nos deram. Tanto um a coisa como a outra são totalmente falsas. Efectivamente, nem as almas expiam as suas penas com o seu regresso a esta vida, nem há outro criador dos seres animados, no Céu e na Terra, que não seja o que fez o Céu e a Terra. Realmente, se a única razão de viver num corpo é a de sofrer um castigo, porque é que Platão diz que este Mundo não poderá atingir a sua plena beleza, a sua plena perfeição, a não ser que se encha de toda a espécie de seres vivos mortais e imortais? Mas se a nossa criação, mesmo numa condição mortal, é um benefício divino, como é que será um castigo voltar para esses corpos, isto é, para esses benefícios divinos? E se Deus, como tantas vezes recorda Platão, possui na sua inteligência eterna todas as formas tanto dos seres vivos como do Mundo inteiro, porque não há-de ser Ele a tudo criar? Acaso não quis ser o artífice de certas obras quando a sua inteligência afável e digna de inefáveis louvores tinha toda a arte requerida para as fazer todas?


(cont)

(Revisão da versão portuguesa por ama)





[i] Jeremias, XXIII, 24.
[ii] Sab. de Salomão, VIII, 1.
[iii] I Corínt., III, 7.
[iv] I Corínt., XV, 38.
[v] Jerem., I, 5.

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